domingo, 28 de dezembro de 2003

O Fim



"... Desejar esta liberdade a alguém, ainda mais por amor, é desejar-lhe o fim. O que existe em nós depois de sermos? O que podemos ser para os outros tendo tido a liberdade de ser para nós mesmos? Há quem diga que a condição humana foi criada porque o homem não tinha a capacidade de aguentar a sua liberdade, de ser. O homem não vive só, nem eu, nem tu, nem a tua amada. Ser livre é morrer. Morrer socialmente, viver livre em nós e morrer para os outros, pois o eu reconhecível não está lá, já não existe, e muito poucas vezes é capaz de ser recuperado. Compreendo tão bem esta capacidade de amar, mas sei que o espelho não reflecte duas faces, o fora e o dentro, e sei que quem está de fora apenas pode escolher o fora, e isso é o fim..."



Figment



Há duas temáticas, que se entrecruzam, que aqui servirão de mote às próximas linhas: O mundo interior e o mundo exterior e o Fim.



Comecemos por recenseá-las separadamente.



O mundo interior e o mundo exterior, a sua composição e oposição, já aqui foram abordados sob várias perspectivas. A minha posição, para o que nesta discussão importará, é a de que o mundo exterior e o mundo interior não se excluem naturalmente, embora diagnostique uma tendência opressiva do mundo exterior sobre o mundo interior. Esta opressão não é nova. Num certo sentido sempre o mundo exterior tentou enquadrar o mundo interior dos seres humanos e sempre alguns se rebelaram contra essa normalização do íntimo. Mas este ponto é apenas percursor do que aqui realmente importa. Os dois mundos existem, interagem, no sentido de que se entreconstroem. Acontece, no entanto, que a importância e prevalência desses mundos é, em primeiro lugar, a priori distinta em cada ser humano. Acontece, em segundo lugar, que a forma como nos determinamos a cada um desses mundos é também distinta de pessoa para pessoa. Assim, o destaque e importância que damos ao mundo exterior e ao mundo interior varia consoante um número plúrimo de influências e critérios. Eis onde começa a reflexão.



Se pretendermos delimitar o espectro do que falo os dois limites serão, de um lado, o autista, que consubstancia a total imersão num mundo interior com reduzida interacção no mundo exterior (menor só seria compaginável num coma); e, de outro lado, uma outra forma de patologia, cujo modelo mais próximo que encontrei pode ser entendido no homem da Loucura da Normalidade de Arno Gruen, em que o ser humano se nega, enquanto pulsão autónoma e se molda totalmente aos desígnios e regras desse mesmo mundo exterior, independentemente de escolher um sub-mundo exterior.



O restante espectro é uma gradação de intensidade entre um ponto e outro. É aqui que se pode fazer a relação com o que disse anteriormente sobre os solitários e os temerários. Não acrescentarei muito agora. O ponto que quero fazer é que o ser humano que desejo, o ser humano feliz em si mesmo, deve conhecer os dois mundos, mas com primazia do mundo interior, pois ele é, para mim, a chave do mundo exterior. Não defendo uma exclusão de um ou outro, mas temo a primazia do mundo exterior sobre o mundo interior, sobretudo como forma do próprio de se esconder de si mesmo. Sobretudo como maneira de nos deixarmos convencer pelo mundo de que somos algo que não somos, pior, que nem sequer sabemos se somos ou não. É contra esta ignorância, muitas vezes temida e assim alimentada pelo próprio ser que me levanto.





Perguntas: "o que existe em nós depois de sermos" Que maravilha seria se alguma vez nos pudessemos perguntar isso mesmo, com o nosso ser perante nós! Seríamos deuses que vêem o mundo como algo Lá Fora. Como algo inconfundível com a sua própria essência.



Excluídos os extâses místicos não penso que o ser humano o consiga. Mas desejo que o busque. Pois se alguma vez conseguirmos ser, no sentido que lhe estás a dar, o de sermos totalmente o nosso mundo interior, sua concretização ou consciência apenas, nesse momento seríamos algo diverso. Algo que se confundiria com o mundo ou, pelo contrário, algo impossível sequer de tentar definir.



Estamos continuamente sendo. E não desejo que sejamos num sentido finalístico mas de percurso. O que quis sublinhar foi qual o sentido do percurso. E aí, claramente, advoguei um profundo conhecimento do nosso mundo interior. Um confronto com tudo o que é nosso. Uma tentativa que seja de percebermos o que nos distingue do mundo exterior, assim delimitando o nosso mundo interior. Só isso já promete descobertas incríveis.





Perguntas: "O que podemos ser para os outros tendo tido a liberdade de ser para nós mesmos?"



A minha resposta é: tudo.



A não ser que denote uma certa ideia de auto-satisfação, que não aceito, a resposta tem de ser evidente. Depois de termos tido a liberdade para sermos, no sentido que aqui venho assumindo, podemos ser para os outros tudo. A medida do conhecimento de nós mesmos, isto é, do nosso mundo interior e do mundo exterior só beneficia o contacto com os outros. Isso é já evidente no confronto entre visões próprias do mundo exterior. Basta pensarmos nos milhares de temas de discussão possíveis desde a política à religião passando por infindáveis temas sociais. Mas a partilha do mundo interior, eis o que tece a verdadeira proximidade entre os seres. Ora quanto mais conhecer o meu mundo interior mais estarei - supõe-se - apto a expressá-lo. E não me refiro necessariamente às palavras mas a qualquer forma de expressão. O silêncio incluído.



Apenas um pensamento egocêntrico (mas todavia possível) poderá concluir que depois de sermos, livres, nada mais poderemos ser para os outros. Como que cairíamos numa estado de autonomia global. Mas aí devo acrescentar, embora só por si seja um tema independente, que as pessoas se aproximam umas das outras, creio, não para se conhecerem melhor, mas para serem melhor. Embora isso, implique auto-conhecimento, claro. Mas mesmo na hipótese teórica de alguém se conhecer já totalmente sempre haveria que continuar a ser. E isso é melhor feito em partilha. Quer pela natureza partilhável do mundo exterior, quer - aqui mais dubitativamente - pela natureza optimizável do mundo interior, quando partilhado. Embora mais exigente, do ponto de vista dos critérios de acesso à partilha. Como as relações íntimas, que são baseadas em partilha do mundo íntimo, demonstram.



Figment, parece-me que extremaste a discussão. Não falo de uma morte social, pelo menos não é o que desejo como liberdade dos outros. A liberdade que desejo para ti é a liberdade de seres não apenas uma construção de um Eu, moldado pelo mundo exterior, mas também não implica cair no seu oposto, construir um Eu, autista - se é que tal é possível - explicado apenas pelo mundo interior. O meu desejo é o do sentido do percurso e parece-me que a liberdade mora aí. Parece-me que a liberdade é no sentido do interior que, então, nos devolverá ao exterior. Numa frase, quanto mais soubermos de nós mais saberemos do mundo.



Sartre disse o Inferno são os outros. Eu direi, os outros, que são o mundo, somos nós (talvez por isso não tenha muita paciência para Sartre...)



Não é à toa que Sócrates tomou como divisa filosófica a inscrição do Oráculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo.



Com isso o vetusto oráculo de Gaia não pretendia incutir um espírito individualista e egotista no povo grego mas antes demonstrar que todo o ser pleno só o é sabendo o que é. Confrontando-se consigo tanto quanto com o mundo. Pelo menos assim interpreto as palavras do Oráculo.





O tema do Fim, por fim.



"Ser livre é morrer" dizes. Não concordo. A liberdade é algo que se define como activo e dinâmico. A morte é sempre passiva. Além de excluir opções. Ora, toda a liberdade é uma opção. Diria que a liberdade é o contrário da morte. Nesse sentido a liberdade é vida.

Apenas aceitaria a liberdade como morte se se definisse a vida como ausência de dúvidas e opções. De busca. Mas não posso estar mais longe dessa visão da existência humana. Sou livre quando submeto o mundo exterior ao meu mundo sem, no entanto, o excluir. Tenho de criar o meu próprio espaço-tempo. A liberdade que te desejo é essa capacidade. De olhares para dentro de ti, de buscares dentro ti a forma de regressares ao mundo. É uma perdição que se torne redenção.



Mas concordo que a liberdade pode ser um fim. Embora a veja como meio, como caminho, é num certo sentido um fim. A liberdade levada aos seus limites totais, ou seja, a viagem em nós pode tornar-se um fim em si mesmo. E aí damo-nos aos outros apenas se estes conseguirem fazer a viagem connosco. Nesse sentido aqui disse uma vez que para alguém estar comigo (entenda-se este estar num sentido de comunhão completa) teria de ter fé. Pois o que é preciso ter senão crença quando mergulhamos em nós ou no outro?



Onde de todo não posso estar mais afastado de ti, Figment é quanto a afirmares que "quem está de fora apenas pode escolher o fora, e isso é o fim...". Pelo contrário, diria que é o princípio. Se estás de fora, tens duas opções. Tentar entrar ou não. Podes resignar-te desde logo e, claro, nada mais conhecerás que o que está de fora. A visão da outra pessoa ao mundo exterior. O que ela mostra e o que ela vê. Mas nada mais.



Mas podemos tentar chegar ao Dentro, por oposto a esse Fora de que falas. É um esforço dividido. Por um lado o esforço do próprio através da liberdade de que escrevi. A liberdade para ser e assim vir ao mundo. E não vir ao mundo para ser - se. Por outro, um esforço nosso, que queremos essa pessoa, e logo o seu mundo, de aí entrarmos, de acreditarmos, pois a razão nega desde logo que o possamos conseguir, de acreditarmos, dizia, que podemos ir ao mundo interior do outro.



Diria, aliás, que o auto-conhecimento, a exploração do mundo interior tem como principal virtude permitir-nos aceitar melhor o outro que nos tenta. Que nos tenta alcançar. Quanto menos nos conhecermos, menos conheceremos os outros. Menos aceitaremos os outros, como Mundo que são.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

Para ti



Para ti desejo, como desejei sempre, a liberdade.



Não quero conversar contigo sobre o que é a liberdade. Não agora. Quero dizer-te o que é a minha liberdade, que coisa é esta que quero para ti.



A liberdade que te desejo é uma faculdade, uma capacidade. Uma visão feita passo.

Explico.

Uma capacidade de seres para além do Eu, que provavelmente, como todos nós, constróis ainda e buscas saber o que é. O que és. Mas não estamos sozinhos nessa busca e como tal não somos só esse Eu que se busca e se constrói, que se procura como ser andrógino platónico. Somos também inspiração, crença e irracionalidade.



A liberdade de que falo está, por isso, para além de uma identidade comum construída através das relações que mantemos, sejam elas de amizade, amorosas ou profissionais. É, num certo sentido, uma aparente contradição do existencialismo. Mas, a mim, parece-me um seu complemento. A existência livre que te desejo há-de incluir não apenas aquilo que vivemos no confronto com o mundo exterior, aspecto muito trabalhado pelos existencialistas, mas também e sobretudo aquilo que vive no teu interior, oculto de ti, mas pulsando. Um pouco à maneira mística. Mesmo que não encontres deus ou deuses no teu fim.



O que te desejo é uma liberdade que significa seres tudo o que ser é. O teu ser. Livre daquilo por que nos habituámos a gritar liberdade. Tudo aquilo em que procuramos construir o nosso Eu pode ser a sua maior armadilha. Não nos devem bastar as sensações e as experiências vindas do exterior, mesmo com as importantes repercussões e reflexões íntimas. Por mais, que te custe acreditar, o teu interior é rico e vasto e por muito que te amedronte é teu. Desejo que te encontres com ele e o vivas plenamente, qual seja o seu sentido. Eis a liberdade que te desejo. Uma liberdade que é assim, também, libertação de tudo aquilo que queres e/ou podes construir com base no passado. Também o passado deve ser equilibrado e temido. Nem tudo o que sempre correu numa direcção o fará para sempre. Heraclito ficou famoso por ter dito que o rio nunca passa duas vezes por baixo da mesma ponte. Mas o Obscuro acrescentou ainda, com menos fama, que nada garante que o rio um dia não corra para a nascente. Peço-te - desejo - que te libertes um pouco - não totalmente, sacode, apenas - da opressão do passado. Ele ensina tanto quando condiciona. Ouve-te e que essa tua voz seja tanto passado e experiências como a intemporalidade e a genuinidade que habita a crença além razão. A humanidade é (também) isso.



A liberdade que desejo para ti, e para mim também, não é, pois, uma liberdade adolescente de fazeres tudo aquilo que quiseres. Contém-na na medida em que da liberdade que te desejo decorre uma ampla possibilidade de movimentos. Senão mesmo total. A liberdade que desejo é não a de fazeres tudo o que quiseres mas de seres tudo o que és. Tudo o que és.



Aceitamos viver e morrer pensando com apenas 10% do cérebro. Aceitamo-lo pois não o sabemos fazer de outra forma. Mas não temos de fazer o mesmo com as nossas emoções, com os nossos impulsos, com os nossos gestos. Com a nossa identidade. Podemos mergulhar em nós tanto quanto no mundo, procurando combinar esse vasto mundo universo com o nosso infinito diverso.



A liberdade que desejo para ti é que sejas o que quiseres pois quanto mais o buscares mais te amarei por isso. Mesmo que essa busca te leve para longe de mim, em terras ou ideias. Mesmo que um dia deixe de te reconhecer, embrenhada que estejas na descoberta e combinação do teu mundo, das tuas trevas ocultas que foste desbravando. Ou luz.



A liberdade que te desejo é um caminho interminável de vela trémula em punho rumo aos mais recônditos lugares de ti mesma. Admito, vai um elogio neste meu desejo. Para muitos esta viagem seria curta e em breve terminaria numa passagem de volta ao Exterior. Mas em ti entrevi ou creio uma imensidão oculta de ti. De ti mesma. Eis o meu desejo: que a percorras e ilumines como queiras e como possas, numa toada de descoberta e criação. Que o teu mundo se espalhe em luz por Aqui. Que o libertes é a liberdade que desejo para ti.



Desejo-te que sejas livre. Que mergulhes em ti. Mas verdadeiramente, nos pontos em sejas cega, em que tenhas medo, nos lugares que penses já conhecer voltes de novo com um outro olhar. Desejo que te ponhas em causa onde menos te ponhas em causa. Que desistas de ponderar e sofrer pelo que sofres e sofras por tudo aquilo que sempre consideraste porto de abrigo. Desejo que a tua liberdade seja, nesse caminho pelo oculto de ti - que é muito e luminoso tanto quanto negro - que te reinventes até ao regresso a ti. Aqui.



Desejo-te tudo isto porque te amo. E a liberdade é uma outra forma de amar. Porventura menos certa para os corações temerários mas cheia de força e vida para aqueles dispostos a darem um passo de crença, no véu de desconhecimento avante. Mas toda a vida é incerteza.



A liberdade que te desejo é indigente e nómada e não sou dos que acredito que haja qualquer beleza e romantismo nestas realidades. A liberdade que te desejo é desconfortável, incómoda e assustadora. Mas pode ser igualmente serena, sorridente e confiante.



A liberdade que te desejo não te impedirá de chorares e de te ajoelhares à morte de quem amas. Mostrar-te-á que apenas te resta que o faças. Mas esta mesma liberdade deixar-te-á fazeres amor mesmo quando estejas cansada e triste pois escutarás o som emergente do teu corpo que o deseja e se deseja de calor.



É uma voragem. É uma voragem caleidoscópica. É assim a liberdade que te desejo. Mas sobre ela, depois de a descobrires, podes fazer o que quiseres. Podes mesmo voltar ao dia de hoje, ao que és agora. Talvez não fique sequer uma nostalgia das descobertas que tiveres feito. A liberdade que te desejo não perdura, apenas dura enquanto a prosseguimos. A conseguimos. É uma liberdade dinâmica, natural, telúrica.



É uma liberdade que existe antes do Eu, dessa imagem que queres ter de ti para poderes decifrar as coisas, para as poderes entender em relação a ti. Pois bem, esta liberdade que te desejo não te permite esse desenho do local das coisas no universo. A liberdade que te desejo é, ela mesma, um universo em que és, permanentemente, uma nova relação com os objectos e de certo e seguro só existe o que tu quiseres dentro de ti. Lá fora o Caos, ou se te assusto, um Cosmos que não entendes. O que é o mesmo. Mas podes dar-lhe uma outra linguagem, não precisas de te refugiar na tua e do que se parece contigo (repara, parece) ou desesperares na tentativa de perceber. Afasta-te dos dogmas que nos isolam em grupos decadentes de ensimesmamento, em que nos repetimos de gestos, gostos e emoções. Afasta-te também de um simbolismo, surrealismo ou pós-modernismo que tente ou destrua a linguagem universal. Não te digo que ela não exista. Mas somos apenas humanos, podemos nunca entendê-la. A liberdade que te desejo levar-te-á pelo meio destas tentações. Poderás acabar ou caminhar por uma delas mas sê livre: sê o que escondes. A maior parte - acredito, a melhor - está oculta de ti. Mesmo onde possas viver mais.



Desejo para ti que te libertes do Eu e sejas.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

O Indizível



para "I'm just a figment of your imagination"



a minha amiga Maria do Mar, que aliás regressou há pouco e com poesia, escrevou-o assim:







Indizível



Tu és o princípio indizível

Que tece a minha vida

És fome de agarrar

E querer o sangue e a carne

És a raíz do meu beijo mais puro

Do meu passo mais certo

Do meu único futuro.



És claridade e escuridão

Dentro dum sonho

E sonho todas as noites

O dia inteiro de ti.



És perpetuamente a vontade do meu corpo

E és a voz lembrando

A precisão do gesto que faz amor

Que mostra a ternura do abraço.



És a aurora e o crepúsculo

E és assim a matéria do meu braço

Que age, deseja e quer.



És a violência da dor

Que traz a ausência

Na mais recente lonjura

E és também leveza do tempo

Quando moro no teu olhar.



És a minha solidão, pois nela entraste

Levo-te a todo o lado

E não há força ou surpresa

A palpitar no meu peito

A desejar-se na minha mente

Que não te contenha.



Pois tu és o princípio indizível

Que me percorre e explica

Tu és o meu sangue em flor

És borbotões de cores

De corrida, de passos, de voos

As mil horas ainda que restam

Sobre mais mil e outras, até à morte.





És aquele princípio indizível

Que não explica a origem da vida

Ou a dança do átomos

Não explicas os buracos negros

Nem os fundos dos mares

És aquele princípio indizível

Que explica a minha vida

Que contém os seus segredos

Que permite a construção e a forma

Do trilho, da estrada

Do caminho ainda por vir



És aquele princípio indizível

Inominável

És nume de luz

Existência, energia e crença

Que é o núcleo das minhas células

A chave dos meus genes

És a linguagem do meu pensamento

Tu és a minha língua.



És o meu princípio indizível

Inexplicável

Pois não se explicam os matizes da criação

Não se sabe qual é o nome do amor.



És esse princípio indizível de mim

Assimilado pelo meu corpo

Deduzido em existência

E assim és o meu desejo de ser

Pois eu sou o desejo de ti.



És o princípio que levo comigo

Na aventura total da vida

Quando apanhei o comboio grande

Por entre estradas e fronteiras

És os meus olhos outros

Para os povos e as vitórias

Só contigo percebo e quero

O que resta ainda de mim.





Tu és a minha viagem

És a ida, a bagagem

És os transtornos e os prazeres

És a força que explica

O próximo passo

O descanso, a insistência

O cansaço.



És indissociada de mim

Pois somos explicadas uma pela outra

E partilhadas uma pela outra

Em corpos que se bebem e contagiam

De emulsões e tremores

De liberdade e fervores.



Tu és o princípio indizível

De qualquer meu gesto

De qualquer meu fôlego

De qualquer certeza



És o nome dos meus filhos



Tu és aquela com quem dormirei sempre

No fim diário das horas

Até à morte final dos dias

Só contigo me quero deitar



Pois se és o princípio indizível de mim

E condensas em ti o universo

Só em ti há repouso e redenção

Só contigo abraço o tempo

Só contigo beijarei a morte.



Maria do Mar




domingo, 21 de dezembro de 2003

Do medo e suas ramificações



O medo é um tema que me fascina. Talvez mesmo um dos mais paradoxais temas sobre que costumo reflectir.



De entre os vários medos possíveis, variados quanto ao critério utilizado, interessa-me hoje pensar sobre um especial. O medo de que gostem de nós pelas razões erradas. Razões essas, seria desnecessário dizê-lo, que são íntimas e identitárias. Isto é, as razões erradas são-no em em relação à auto-imagem de cada um.



Consideremos isto. O ser humano, teme em geral, ser amado pelas razões pelas quais seria óbvio ser amado.



Admito, estou a pensar em mim e a tentar induzir uma tese. Mas, sejam indulgentes, talvez o caminho valha a pena.



Serei honesto e escreverei na primeira pessoa. Generalizarei quando pensar ser possível.



No meu caso temo que gostem de mim pelas razões em que exterior e objectivamente sou bom e logo atraente. A ligação entre o bom e o atraente é clássica e impossível de traçar, mas conheceu adeptos tão esclarecidos como Platão e Aristóteles, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Santo Anselmo, Kant ou Deleuze. É, pois, compreensível que as pessoas se aproximem de mim, e umas das outras, por aquilo em que sou bom. Claro, a qualificação é o problema. É que aquilo que é objectivamente bom é o que na verdade é socialmente valorado por uma maioria o que nada tem que ver com o critério totalmente subjectivo do gosto ou do amor que o sujeito deseja para si.



Pelo contrário. Desejo que gostem em mim daquilo que penso serem os meus aspectos medianos ou mesmo negativos. Querem que tratem aquilo em que me valorizo como eu próprio trato: com desdém, como adquirido. O que desejo é que gostem de mim pelo inexplicável, pela simples presença.



Pense-se no caso da modelo que tem trauma de não ser intelectual e que abomina que se interessem por ela por ser bonita. Não é evidente que tal acontecerá? Mas não é também compreensível que ela não valore isso como positivo? Parece-me que sim.



O exemplo inverso também é possível. O esterótipo da pessoa arrumada, atinada, culta que deseja ser amada pela sua loucura, pela sua capacidade de transgredir as regras. Será só e apenas uma vontade de ter aquilo que não se tem?



Independentemente da verificação mais ou menos frequente destes exemplos, importa-me esta repetição de vontades.

Em mim ela é muito claro. Tenho pânico de que as pessoas se aproximem de mim por razões que, vistas bem as coisas, são perfeitamente previsíveis e compreensíveis. Talvez por isso me amedrontem tanto.



Acho que o que é bom e/ou atraente não deve ser motivador de gosto ou amor. Pois assim se objectiva e explica algo que não deve, para mim, ser objectivado e explicado. Admiração, por certo. Atracção mesma, desde que entendida, como um fenómeno meramente físico e não agregador ou provocador de emoções continuadas e profundas.



Claro que há um poderoso contra-argumento. Mas não será compreensível que se ame em alguém o que ela tem de melhor? O que é bom. Claro. Mas a minha preocupação é a aferição desse bom. Se houver uma discrepância entre aquilo que a pessoa que me ama ama em mim e aquilo pelo qual pretendo ser amado os resultados podem ser catastróficos.



Pense-se no seguinte exemplo. Imagine-se um advogado de sucesso, medianamente bonito, com dinheiro. Que gostem dele pelo sucesso profissional, pela beleza ou pela riqueza, com maior ou menor grau de aceitação, posso até admitir que é compreensível. Mas parece-me igualmente compreensível que o próprio não queira ser amado por isso. E excluo aqui complexos de culpa quanto ao seu sucesso e dinheiro. Admitamos que se trata de um sucesso e riqueza merecidos. No entanto o próprio não lhes dá valor. E, no entanto, é amado por isso. Um dilema. E compreende-se a pessoa que por essas razões ama - a admiração profissional é, aliás, umas das maiores razões de atracção. Mas compreende-se igualmente a pessoa que deseja ser amada por... um je ne sai quoi. É isto que, no fundo, aqui estou a advogar.



O meu medo é de ser amado por razões que eu próprio despreze mas que, no fundo, compreendo que sejam factores de atracção, paixão e mesmo enamoramento. O meu desejo é que o gosto e o amor sejam inexplicáveis. E, como tal, o meu medo deixe de ter sentido pois deixo de poder controlar ou verificar as razões pelas quais sou amado. Elas seriam insondáveis. Eis o paradoxo, de que já aqui uma vez falei, para mim o amor mais seguro, mais criativo e mais forte é aquele que não se explica. E que, no meu caso, não me amedronta.



Assusta-me pensar que as pessoas que me procuram ou que gostam de mim, sabem explicar porquê. Por mais estranho que isto possa parecer considero normal que o ser humano deseje ser amado pela sua humanidade. Ora a humanidade é inexplicável.



Pelo menos até ao momento...

sábado, 20 de dezembro de 2003

Todas as palavras



São apenas, pois, o intervalo dos gestos contínuos, que devem ser tudo. Os pensamentos que as palavras traduzem - só isso devem traduzir - nunca se ame com palavras! mas com gestos! - desejo que vos inspirem, ajudem.



Ou jazam.



....estou em Busca...
Estou de volta...



Da fragilidade das coisas, sejam objectos, emoções ou o Mundo não falarei agora.



O Universo tem o seu próprio modo de nos mostrar como tudo é uma ilusão. Ou um mistério.



No fim, de um momento ou de tudo, só contam os nossos gestos. Os simples, delineados com os movimentos de um braço, de um olhar, de um abraço. E os complexos, teias de direcções e sentidos percorridos com as palavras e os músculos.



Só o que f a z e m o s conta. Sem desculpas nem justificações.
Eu sou o Fogo da Terra, as minhas emoções são azuis como toda a Água Profunda.



Ar é o que preciso.






para a Sara, a Ana e a Lena.
Enquadramento Imagético



Local:



Tirada numa lareira algures numa casa alentejana



Nome:



Fogo Azul - Fogoazul.jpg



Equipamento:



Máquina fotográfica digital, HP 320, sem flash. A fotografia não sofreu qualquer tratamento.
Parabéns



sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

Amo-te













mesmo que nunca o percebas

e porque não o sei explicar.







O Amor é o que resta além da Razão Pura; da Dor Intensa;



O Amor é o Paradoxo Absoluto.

sábado, 6 de dezembro de 2003

"What can be said at all can be said clearly; and what we cannot talk about we must pass over in silence"



Ludwig Wittgenstein, Tratactus Logico-Philosophicus

quinta-feira, 4 de dezembro de 2003

Omega
"olha, pá, acho importante que as pessoas sejam simpáticas umas com as outras. Sei lá o que é que eu acho. Sinto muito. Não sei o que achar. Não acho nada."



H. M.



Reductio ad felicitatem



Um dos aspectos que sempre me fascinou no pensamento humano é a sua capacidade para se reinventar em proximidades lógicas, embora paradoxais, apesar dos afastamentos temporais. De Sócrates a Lacan, Deleuze ou Derrida medeiam mais de dois mil anos e no entanto ambos defendem algo que me apraz conciliar. A negação da verdade.



Mas, se em Sócrates a negação da verdade pretende apenas adiá-la a um esplendor maior mediante o caminho da virtude, a percorrer antecipadamente, nos pós-modernistas, modernidade devedora de Sócrates, quer por Kierkegaard, quer por Nietzsche, a verdade não é adiada, é excluída. Não há verdade, há opinião, há verdades. Não há nada. Há o caos. Um pós-existencialismo relativista.



No meio disto tudo importa recuperar a ideia de que é "importante que as pessoas sejas simpáticas umas com as outras" Esta redutio ad felicitatem é interessante na medida em que pode oferecer uma ponte de conciliação entre dois mil anos de pensamento filosófico. Na medida em que a felicidade é, por um lado o farol da virtude (Aristóteles) e por outro, um conceito indeterminado (como o mero cotejo religioso ou ético intemporal nos permite concluir), a redutio ad felicitatem principia socrática para se concluir pós-moderna, numa síntese que apenas poderemos começar a analisar e que inaugura um pensamento paradoxo-paróxico.



Queremo-nos despir, à maneira socrática, de todo o falso conhecimento para nos vestirmos, paulatinamente, de virtude mas fazemo-lo, tendo como convicção prévia, que o ideal de felicidade que nos sustenta é subjectivo, cambiante e sujeito a uma desconstrução revitalizadora.



Só sei que nada sei,



substitui-se por



Só sei que quero a felicidade de que nada sei.







"só que depois descobri que o próprio Nietzsche sofria de uma cena incrível: Nietzsche critica Eurípides por ele ser, no fundo, uma espécie de porta-voz de Sócrates. - portanto, o artista em prol do filosofo. Quando o gajo diz que foi por isso que a tragédia se suicidou naturalmente, podes perceber a verdade desta frase, certo? e a beleza? Mesmo que não concordes, right? ok, logo vi. Só que.... Nietzsche tenta influenciar Wagner da mesmíssima maneira. Além de que de Sócrates só temos o personagem. De quem? De Platão. E agora diz-me se isto não parece uma charada esquizofrénica."



H. M.



A charada esquizofrénica





Claro. Mas neste ponto não poderemos dizer que é na verdade Heraclito que inspira Nietzsche? É a sua voz oculta.



E mais. Não é afinal Eurípides, que leva a tragédia ao suicídio assistido por Sócrates, o grande revelador de Diónisos, através das sua Bacantes, que Nietzsche cita? Sou forçado a concluir que sim. Assumindo, pois, que o deus e o filósofo inspiradores de Nietzsche são afinal servidores do Logos, que o próprio alemão combate em nome de um Caos-Cosmos que perpetuamente devem.



A charada não é tanto esquizofrénica quanto comédia de enganos que é. Harlequins e Columbinas digladiadas em mentes cindidas.

"...na minha opinião, Nietzsche tinha dito uma coisa da qual tu te esqueceste, ao citá-lo: a síntese dele é que cada homem é um valor - ou seja, se para ele os valores não existem e se a moral é uma espécie de negação da vida, o que ele de facto quer dizer é que a tradicional forma platónica de projectar valores n existe, porque os traduz (os trai), sempre que é utilizada. Não existe a folha. Nenhuma folha é igual à outra. Ninguém é normal, porque todos somos normais. Daí que os valores são os próprios homens. Cada homem é um novo valor. Às vezes há pessoas tão porreiras que uma pessoa tende a transformá-las em conceitos abstractos (a abstractizá-las? diz-se assim?) (Eu tinha explicado isto muito melhor n[ão] sei bem aonde). Se Sócrates morre para dar o exemplo de que aceita sobretudo a lei, e se Jesus faz a mesma coisa, já vês porque é que Nietzsche tripa com eles e é anti-eles. (atenção: É muito fácil que esta teoria seja traduzida para maus fins, e foi o que aconteceu, com a trip do super-homem ariano, mas pronto, ok, isso tu sabes, e não interessa agora para o paleio - actualmente ando interessada nos judeus, em Levinas e Derridas para equilibrar ou assim, se queres saber.)"



H. M.





Para além de Nietzsche



O Nietzsche que referi interessa-me pela forma como mata Deus unicamente para afirmar que a existência humana é algo de profundamente dilacerante e angustiante na sua solidão, post deum mortem. Repare-se: interessa-me a primeira parte e não esta última, com que, aliás, não concordo. Aliás, nem o próprio Nietzsche. A razão pela qual enlouqueceu prende-se com a sua incapacidade de viver com o entusiasmo do paradoxo. Entusiasmo significa estar preenchido de deus. Ele mata deus unicamente para ressuscitar dois: Diónisos e Apolo. O primeiro o deus do paradoxo, o segundo o deus da linearidade. Com esta contradição, que ele próprio revela e assume, nunca se conseguiu muito bem entender



"Ich bin dein Labyrinth... [...] Ich bin deine Wahrheit..."



Nietzsche, Os Ditirambos de Diónisos



Cada homem é, pois, um novo homem. Sempre devendo superar-se no meio do seu próprio cepticismo e da sua própria subjectividade. O super-homem é afinal o novo deus, enquanto deus se mantém o mesmo, um preenchimento do interior, uma alma, que Nietzsche começa por negar para depois encontrar em si mesmo. Enlouqueceu. No encontro da verdade, pois o que é a loucura senão a verdade incomunicável encontrada. Uma maldição de Cassandra: saberás mas não te acreditarão.



"Continuamos sem saber de onde provém o impulso para a verdade; porque até agora apenas ouvimos falar da obrigação que a sociedade impõe para existir: ser verdadeiro, isto é, utilizar as metáforas usuais, portanto, expresso de uma maneira moral, da obrigação de mentir segundo uma convenção estabelecida, de mentir de um modo gregário, num estilo vinculativo para todos"



Nietzsche, Acerca da Verdade e da Mentira



Ora, onde discordamos que a mentira tenha de seguir uma convenção estabelecida. Ou seja, que a verdade seja só uma e redunde numa só mentira. Uma mentira social. A mentira, pelo contrário é algo de pulverizado, que nega a difusa verdade. E Nietzsche bem o sabia...



"eu sou o que é constrangido a superar-se a si mesmo até ao infinito [...] Porque será mister que eu seja luta, e devir e finalidade, e contradição?Ai! aquele que adivinha a minha vontade adivinha quão tortuosos são os caminhos que precisa seguir"



Nietzsche, Assim falava Zaratustra



Eis onde o filósofo louco demonstra que a contradição valorativa é afinal a assunção do binómio eterno mentira-verdade. Para ele a verdade é o devir em algo para além do previsível. Matam-se os valores, mata-se o homem. Surge o super-homem coroado de eterno-retorno.



O que importa tudo isto? Muito pouco, quase nada.



De Nietzsche pretendo reter a afirmação de um devir refundido, roubado a Heraclito, antes de todos. E, sobretudo a ideia de uma existência paradoxal mas não por isso vazia, pois continuamente alimentada. Eis onde me aproximo dele tão-só para me afastar do seu abraço niilista. É que o nada não chama. Não acredito na voragem vazia. Toda a voragem vertiginosa que clama há-de conter algo dentro de si. Penso que isto mesmo Nietzsche percebeu. Mas já não nos deu conta. O seu próprio deus, que tão mal compreendeu, levou-o.



O mais interessante é que nem Sócrates nem Jesus se matam para assumir a lei e o filósofo bem poderia ter alcançado um pouco mais de luz se o houvesse compreendido. Pela morte, Sócrates e Jesus, colocam-se acima e além da lei. O primeiro porque a supera moralmente. O segundo porque a supera espiritualmente. Ambos dão a outra face. O que nunca é aceitar mas antes a suprema transgressão.



Não se tivessem sacrificado Sócrates e Jesus por nós e não teríamos civilização europeia. Nem César, nem Deus. As suas mortes, triunfantes, apaixonadas, imortalizaram-nos. Tivessem vivido e hoje não estaríamos aqui. Não com esta matriz civilizacional.



...de Derrida não falarei agora. Integra-se na rubrica dos Autores que leio apenas para poder dizer mal. Um dia neste blog.





"...ninguém anda a ler para ter a verdade, mas para a poder reconhecer quando ela aparece nossa frente. Ou pelo menos, para poder prevenir-se da mentira. O medo é o melhor amigo do Homem, e eu, [...], duvido de mim própria o tempo todo. És um mentiroso, provavelmente. Ou não."



H.M.



Lendo a Verdade, a Mentira e o Medo



Não sei porque leio. Quando ponderei esta pergunta já lia há muito tempo e não me pareceu que saber a origem dessa acto-prazer-compulsão pudesse ter em mim qualquer efeito. Além de uma genérica sensação de conforto pela descoberta de mais um pedaço de mim. Encaro-me a mim próprio como um enigma, um segredo...diria que...



"Our cause is a secret within a secret, a secret that only another secret can explain; it is a secret about a secret that is veiled by a secret."



Ja'far as-Sadiq, sixth Imam, cit. Umberto Eco, Foucault's Pendulum



Assim me considero. E assim gostaria de pensar toda a existência humana. Em vez do vazio existencialista um enigma. Um enigma por revelar, um enigma a revelar. Não quero assim destruir teorias filosóficas. Nada me surpreenderia se ao cabo do desvendar do enigma descobríssemos o vazio. É o percurso até ele que me interessa.



Ou seja, não leio para descobrir a verdade. Leio para me descobrir, para me revelar, para desvendar. Se com isso se chegar à verdade, melhor. Pois dela não tenho qualquer ideia.



Poderia dizer que a verdade é a morte. O cristianismo não me deixaria mal. Jesus, a Verdade, morreu por nós. A verdade morreu, pois, por nós.



Sabemos, no entanto, que a Verdade não morreu. Antes ascendeu aos céus. A verdade é, pois, uma morte que se perpetua em divindade até ao Juízo Final. Momento em que a Verdade regressaria ao nosso meio.



"Aquele que é testemunha de todas estas coisas diz "Sim! vou chegar muito em breve!" Assim seja! Vem, Senhor Jesus!"



Apocalipse 22, 20



Estaríamos, por isso, desde a morte de Jesus, sem a Verdade entre nós? Com uma Verdade adiada, hipostasiada, mimetizada? Longínqua. Até ao Reencontro Final.



Fica por resolver a questão fundamental. O que é Jesus? É amor. O que é o Amor? É a verdade. There we go again... Não me parece ser este o caminho. Ou dito de outro modo. Este é, também, um caminho. Mas não nos apresenta a chegada. E essa mesma dúvida podemos encontrar em outras religiões. Tarefa metódica que deixarei para outros dias, dedicados às matérias religiosas.



A verdade não há-de ser, totalmente, a morte. Podê-lo-á ser, em parte, mas devemos render-nos a evidências de que enquanto estamos vivos a verdade há-de ser algo diverso da morte sob pena de cairmos num niilismo fatal, que nos definiria a vida como a descoberta da verdade pela morte. Pobre vida seria. Embora já alguns o tenham ensejado.



A verdade, assim desconhecida, pode bem por isso ser esse secreto enigma que nunca atingiremos, que antes nos impele. Idealmente. Neste percurso a virtude desta verdade inalcançável poderá ser o de nos precaver da mentira. Do preconceito.



"To dare to allow for all [the] different viewpoints, including the encompassing scientific one, [is] a greater achievement than to pursue the discovery of one exclusive Truth. The new challenge [is] to understand that the truth [...] is multiple and varied and yet also one. But this [is] something that [...] people [find] hard to do. It [is] easier to stick to an opinion.

[The] challenge [is] not so much to establish the Truth of the stone, but to learn to live with the mysteries of its many shades of light"




Emmy van Deurzen , Paradox and Passion in Psychotherapy



Neste sentido podemos dizer que mais do que a busca da verdade importa a busca da mentira, ao modo de Bachelard.



É evidente que esta posição nos cria medo. A normal insegurança daqueles que se movem em terrenos sempre mudando. Mas isso não nos deve demover. Ou, melhor dizendo, não me demove. Nesse sentido, a cada momento sou um um mentiroso medroso em busca da verdade. Minto pois cada momento que passa nego uma verdade assumindo outra. Afinal, uma e a mesma. Medroso pois a inconstância e a insatisfação interior instam-me a duvidar. Tenho medo de ainda não ser aquela a Verdade, mas apenas mais uma verdade. E prossigo.



Parece-me que prosseguirei sempre. Mas se algum dia me encontrar com uma verdade que me pareça a Verdade, que amanse o meu medo e me impeça de mentir, serei o primeiro a sentar-me à sua sombra. Tentarei aproveitar os seus frutos.

"...isso levar-me-ia a tentar descodificar o inconsciente colectivo actual (a tentar fazer uma espécie de upgrade da cena) e é provável que entretanto marasse de vez dos cornos. Poderia fazê-lo, mas ou isso ou a carta de condução. Ou continuo enfeitiçada pela linguagem ou ando com a minha vida para a frente. E para que haveria eu de escrever na blogosfera, caro leitor ideal ausente????!!!!"



H. M.





O leitor ideal ausente ou Lector in Fabula



"Avant d'expliquer aux autres mon livre j'attends que d'autres me l'expliquent. Vouloir l'expliquer d'abord c'est en restreinde aussitôt le sens; car se nous savons ce que nous vouloins dire, nous ne savons pas si nous ne disions que cela - On dit toujours plus que CELA. - Et ce qui surtout m'y interesse, c'est ce que j'y ai mis sans le savoir, - cette part d'inconscient, que je voudrais appeler la part de Dieu. - Un livre est toujours une collaboration, et tant plus le livre vaut-il, que plus la part du scribe y est petite, que plus l'accueil de Dieu sera grand. - Attendons de partout la révélation des choses; du public, la révélation de nos oeuvres."



André Gide, Paludes



Comecei a escrever, como todos os que começam a escrever, exceptuados aqueles espontâneos escritores, cujo chamado das palavras não vem das palavras, mas de uma incógnita voz que lhes ensina as letras e o modo, porque havia começado a ler.



O que se lê à boca do deslumbramento de poder ler, de saber ler, é o momento decisivo de um percurso. Não é irreversível mas é incontornável. Eu li os clássicos, estrangeiros e portugueses. Um dia vos falarei dos clássicos. Dos meus clássicos. E li Umberto Eco. Eco semiólogo. E li Italino Calvino. Calvino filósofo.



Vou levar-vos comigo ao contrário. Deixem-me contar-vos o fim desta história. Ela acaba onde se percebe por que o escritor destas linhas escreve para alguém que não existe. Alguém, como um amante ideal, que se sabe não existir mas cuja ilusão é doce. E basta. Mais. Motiva. Este escritor, que evidentemente se vê a si mesmo de fora para dentro, ideal, escreve para um leitor ideal. Os mais dados a reduções simplistas dirão: escreve para si mesmo. O escritor ideal escreve para alguém que o compreende como todo o ser humano gostaria de ser compreendido. Totalmente. Mais. Para além da totalidade, como um mistério inefável. O leitor ideal compreende melhor a existência do escritor do que ele mesmo. Eis a destruição de todo o existencialismo: não mais o escritor é um invólucro do nada, ele é a fonte de onde brota a matéria-prima do leitor ideal. Este leitor, leitor demiurgo, é ele mesmo a razão de ser, profunda razão de ser, do escritor ideal. Só a sua intervenção o completa, só ela lhe dá significado. Identidade. O escritor ideal é criado pelo leitor ideal.



"O leitor modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor empírico é você, eu, quem quer que seja, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de muitas maneiras e não há uma lei que lhes diga como devem ler, porque frequentemente usam o texto como um contentor para as suas próprias paixões, que podem surgir do exterior do texto, ou que este pode casualmente despertar."



Umberto Eco, Seis Passeios pelos Bosques da Ficção



Ora, por paradoxal que possa parecer, eu, embora escreva secretamente para o meu leitor modelo, encarnando, por elementos várias, o autor modelo, pretendo, furiosamente, que seja o leitor empírico a tomar conta do meu texto. Quero que ele "avance no bosque narrativo como se fosse o seu jardim privado". Mais. Que nem pense sequer em fazer outra coisa. Que desde o início apenas veja o seu jardim. Tudo lhe pareça desde logo familiar. E que isto assim aconteça com todos os leitores. Quero que se esqueçam de mim.



Ou seja, o meu leitor modelo está oculto nas entrelinhas, é um meu prazer secreto, para quem escrevo meta-narrativas, com deliciosos pormenores que só ele perceberá e que constroem a nossa cumplicidade. Trata-se de um leitor ideal ausente. Um leitor ideal que conversa comigo nas entrelinhas. Com quem discuto de modo aceso, enquanto o texto, em todo o seu esplendor, é tomado pelo leitor empírico. E me abandona.



Mas há mais.



"Há duas maneiras de percorrer um texto narrativo. Este dirige-se, acima de tudo, a um leitor modelo do primeiro nível, que quer saber (e com razão) como acaba a história (se Achab conseguirá apanhar a baleia, ou se Leopold Bloom encontrará Stephen Dedalus, depois de se ter cruzado casualmente com ele várias vezes no dia 16 de Junho de 1904). Mas todo o texto se dirige também a um leitor modelo do segundo nível, que se interroga sobre que espécie de leitor a história gostaria que ele se tornasse, e deseja descobrir como procede o autor modelo que o vai guiando. Para se saber como acaba a historia, normalmente basta lê-la uma vez. Mas para se identificar o autor modelo, é preciso ler o texto muitas vezes, e certas histórias têm de ser lidas sem fim. Só quando os leitores empíricos descobrirem o autor modelo e tiverem compreendido (ou tão-só começado a compreender) o que ele queria deles, é que se tornarão leitores modelo de pleno direito."



Umberto Eco, Seis Passeios nos Bosques da Ficção



Pois bem. Na poesia desejo que nunca o leitor empírico se torne leitor modelo. Para mim não há sequer possibilidade de tal acontecer. O leitor modelo é aí um ideal, total. E o escritor poeta mesmo que enderece a sua poesia a alguém ou um fim está destinado pela polissemia rítmica e semântica a ser apropriado por cada leitor. Mesmo que este tente tornar-se leitor modelo nunca o conseguirá. Ou consegui-lo-á apenas formalmente, pois poderá seguir a estrutura do poeta mas não o sentido do poeta. Pelo menos não do meu poeta ideal. É que o sentido da poesia, como acreditavam os antigos gregos, é divino. Estaria aqui com Gide ao dizer que mesmo que convoque a colaboração do leitor sempre ele chegará, ou deverá chegar, a um sentimento diverso daquele que pretendi celebrar. Os sentimentos semelhantes são ainda e sempre separados por um abismo. O abismo da irredutibilidade humana. Diria mesmo, sobretudo, aqueles que mais se parecem assemelhar.



Não assim na prosa. Quanto mais estruturada e complexa. Aí escrevo para uma miríade, impossível e indesejável de determinar, de leitores empíricos. Como os desejo! Que tomem a obra e criem confusão. Se recriem nela e nela se discutam. E me deixem na intimidade profunda que pretendo construir com o meu leitor ideal. Aquele que apanha as subtis referências culturais, os truques linguísticos, as arquitecturas ocultas da narrativa.



Calvino parece não concordar comigo



"Estou convencido de que escrever prosa não deverá ser diferente de escrever poesia; em ambos os casos se trata da procura de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável"



Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio



Mas de aparência se trata pois Calvino debruça-se sobre a motivação do escritor, não sobre as possibilidades ou faculdades do leitor. Ora é aí que devemos encontrar a destrinça que faço entre prosa e poesia. A poesia mais facilmente se deixa levar pelo leitor empírico. Mais facilmente, acrescento eu, desejo que se deixe levar pelo leitor empírico. A poesia assemelha-se-me a algo que só se completa quando o leitor lhe atribui o seu próprio significado. Deveria ser cada leitor a assinar um livro de poesia. O poeta é uma mera voz perpassante.



"A regra fundamental para abordar uma obra de ficção é o leitor aceitar tacitamente um pacto ficcional, a que Coleridge chamava "suspensão da incredulidade". O leitor tem de saber que o que é narrado é uma história imaginária, sem que por isso pense que o autor está a dizer mentiras"



Umberto Eco, Seis Passeios nos Bosques da Ficção



Ora, na poesia de que aqui escrevo, a "suspension in disbelief" é impossível pois o leitor por mais que se queira tornar modelo de um modelo do autor é dilacerado, arrebatado, vivificado por algo muito dificilmente sujeito a incredulidade: os sentimentos. Haverá algo mais difícil do que suspender a incredulidade dos sentimentos? Ou se sente ou não se sente. Mas a sentir-se, sente-se sempre em si. Eu sinto-me.



Podemos tentar suspender a nossa incredulidade apenas suavemente. Acreditamos que aqueles são os sentimentos do autor e seguimo-lo. Mas os sentimentos são algo de irracional pelo que dificilmente sentimos em conjugação com o autor. Antes nos apropriamos do seu sentimento e o preenchemos de nós.



Não assim com a prosa. Essa permite-nos a porta de um mundo, a sua travessia, a entrada em novas Físicas, novos Princípios. Mesmo que depois, mais tarde, se nos depare o sentimento, já o conseguimos endereçar às personagens. Ora o eu poético, sou sempre eu leitor. Leitor empírico portanto.



Escrevo não tanto sobre uma diferença, abrupta entre poesia e prosa mas entre um espírito poético e um espírito prosador. Sendo que estes tanto podem perpassar o que convencionamos chamar poesia, como o que convencionamos chamar prosa.



Assim, o leitor ideal continua ausente.



Na poesia só o poderia admitir se acreditasse num Outro Eu. Corpóreo, existente, pulsante.



Na prosa ele existe também e deve existir. Mas prefiro oferecer a obra para o leitor policial empírico, que deseja saber whodunnit, e resguardar um espaço oculto para o Ele. Essa figura entre a minha imaginação e a possibilidade real



E isto porque...



"...oxalá fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada de um eu individual, não só para entrar noutros eus semelhantes ao nosso, mas também para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na Primavera e a árvore no Outono, a pedra, o cimento, o plástico..."



Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio



Eis onde me encontrei com Calvino, em deslumbre.



Ambos sonhamos estar para lá do eu. Que pouco sei o que é.

Deixar o texto ser vagamente nosso e profundamente dos leitores tangentes.

Alfa

segunda-feira, 1 de dezembro de 2003

Vou retirar-me para meditar



porque



A verdade é uma criança crescendo.



Não é o Nada nem é o Absoluto. É algo que se há-de assemelhar a uma forma sempre cambiante, que arde e dói, que extasia e enobrece e que, mesmo ardendo nas mãos e no peito, podemos aprender a transportar. Algo que não deixamos de amar mesmo que permanentemente se refunda, flua e reflua. Eis uma criança crescendo. Eis a verdade.



Está longe das certezas da modernidade, de Descartes a Hegel e está para além dos vaticínios da pós-modernidade de Lacan a Derrida. Está viva, embora mudando. Não está morta, pulsa.



Está também para além de Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger ou Sartre pois a verdade não é uma intencional existência afirmando-se. É uma busca que pode buscar-se a si mesma, enquanto explicação do percurso e não da chegada.



Não há intenção há deslumbre e chamamento.



Nada de novo, vou em busca.