domingo, 17 de fevereiro de 2019

"Não abras a porta a estranhos" de Maria Sousa

No próximo dia 23 de fevereiro será lançado o terceiro livro de poemas da Maria Sousa. A Maria é uma das minhas poetas/poetisas preferidas e tenho a sorte de ser amigo dela.

O terceiro livro de poemas da Maria tem como título "Não abras a porta a estranhos" e nele, para quem vem acompanhando a poesia da Maria, sentimo-nos como a Alice ao cair pelo tronco da árvore. A metáfora é tanto mais certeira quanto ser Maria neste livro o Coelho Branco e nós leitores aqueles que a seguimos. Mas ao invés de não ter tempo a Maria parece ter todo o tempo do mundo. O tempo da demora que funde passado, presente e futuro. Ela escreve de um local onde o tempo nos é recordado dolorosamente da sua relatividade.

Ao terceiro livro de poemas a Maria Sousa confirma-se como uma poetisa a quem pode reconhecer-se sem qualquer exagero ou impropriedade a autoria de um longo poema contínuo. A casa é o seu país mas em vez de maravilhas encontramos uma longa solidão. Ambas são neste terceiro livro explicitamente assumidas por intermédio de epígrafes iniciais (e iniciáticas) de Rui Nunes - "Só há um lugar para a solidão de cada um. O meu é esta casa" e de Raquel Nobre Guerra - "Porta no trinco e nada nas mãos. Há muito que é tudo o que resta". 

Esta assunção do mundo de Maria talvez seja uma das explicações para neste seu terceiro livro de poemas haver um refinamento e uma coesão não vista nos livros anteriores. E daí referir-me a um longo poema contínuo que é não só este livro como toda a sua obra publicada vista a partir deste "Não abras a porta a estranhos".

Praticamente todos os poemas deste terceiro livro fazem da casa a sua metáfora, quer através dos seus materiais, da sua realidade física, quer através das emoções que evocam. Encontramos a casa através das suas portas (pág. 9, 14, 17, 26, 31, 33, 41, 42) e janelas (pág. 24, 30, 31, 40), das suas paredes (pág. 10, 37), dos seus armários (pág. 11), dos corredores (pág. 20) e quartos (pág. 19, 40), mas também através do seu passado, (pág. 12, 13, 18, 23, 29) s seus silêncios (pág. 9, 11, 24, 30, 32, 33, 42) e da sua escuridão (pág. 15), das suas noites (pág. 12, 30, 37, 41)  da sua solidão (pág. 9, 13, 19), das suas mortes (pág. 10), da ausência e do vazio (pág. 10, 16, 17, 19, 21, 22, 32, 39), das suas memórias (pág. 11, 12, 18, 35, 42).

Não estamos aqui perante uma coleção de vocábulos. Se os enumero é para sentirmos o seu peso, a sua cadência e para percebermos como cada poema tem a força dupla do que diz por si e da longa toada em que se insere 

a manhã nasce sempre da ausência
e rodeada de um silêncio tão vazio

faço uma lista de todas as minhas mortes

Versos como estes surgem assim fortíssimos, como uma bala à queima-roupa, que nos deixa em choque, até aos próximos versos, ao próximo poema, sem noção do ferimento que tomámos, do mundo em que entrámos

há uma porta que ninguém abre
uma máquina de inventar vozes

e tu vives na solidão até
as lágrimas te cortarem a voz

Assim, continuamos, de forma quase hipnótica, na casa-mundo de Maria.

Esta ubiquidade das palavras que constituem os materiais e as emoções da casa acaba por criar uma estrutura que se estende mesmo para lá das palavras e cujo espírito perpassa de poemas para poemas. Mesmo sem as referir num ou noutro poema, passamos a habitar a casa de Maria Sousa e mesmo que ela não escreva portas ou paredes, passado ou vazio, nós estamos irremediavalmente confinados à sua casa, com as suas portas e paredes, o seu passado e o seu vazio. Esta presença fortíssima, que podia tornar-se pesada é subitamente temperada pela presença dos objetos que Maria faz pontuar e aparecer pela narração da sua casa, os cigarros, as cartas, o telefone, o espelho, os relógios. Estes objetos tornam-se as pistas para conseguirmos olhar para além da estrutura contínua do livro de Maria e para entrevermos os matizes que ela nos dá.

Ao terceiro ensaio de Maria Sousa sobre a experiência da solidão e da ausência como uma casa - ou de uma casa como solidão e ausência - a prática fez uma forma de perfeição, mas também de encantamento (ou maldição). É difícil entrar na casa de Maria sem que procuremos (queiramos?) sentir-nos como aquela voz, para melhor vermos as portas e as paredes, os corredores, o passado e a noite, como aqui nos são trazidos. Não sei se será para salvarmos essa voz ou para nos perdermos com ela. Os encantamentos são assim mesmo, perigosos na sua beleza.

mas nem mesmo o abandono tem palavras que me façam sair

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