domingo, 1 de fevereiro de 2015

O Quinteto Islâmico

Já aqui havia falado dele quando me aprestava a iniciar o terceiro romance do quinteto, intitulado The Stone Woman. Curiosamente, aquele de que viria a gostar menos. Mas não nos apressemos.

2005. Setembro. Tudo planeado para a viagem da minha vida: 10 dias para fazer de carro Atenas-Salónica. Aterraria em Atenas, alugaria um carro e regressaria por Salónica dez dias depois. Estamos a falar de uma viagem mais curta do que Lisboa-Porto, cerca de 300 km. Mas eu ia pela viagem, não pela chegada. Pelo caminho havia a Grécia inteira, exceptuado o Peloponeso que são contas de outro rosário. Estava quase tudo planeado e o que não estava era de propósito: com dez dias para fazer 300 km a ideia era fazer 3000 se me apetecesse, esquadrinhar a Grécia ao sabor da aventura, ter margem para improvisar. A duas semanas da partida, urgência profissional. Não podia sair do país, tinha que acudir a um fogo, algo importante, complicado. Adiei a viagem, jurando que a faria no ano seguinte. Não fiz. Ainda não a fiz.

Mas, enfim, tinha férias para gozar. Mais: precisava de férias. Quando a minha urgência passou estava cansado, mas determinado a ainda aproveitar qualquer coisa, era preciso um plano de contingência. Em cima da hora as viagens estava todas caras, já estávamos em Outubro, para onde ir? Desafiei um amigo a ir comigo para Dublin. Conhecia a cidade, que adoro, ele não, seria perfeito. Mas havia a coisa do clima. Depois de ter pensado na Grécia em Setembro, Irlanda em Outubro era dramático. O meu amigo concordou. E que tal Marrocos? pensámos. Assim o fizemos. Metemo-nos à estrada, direitos ao Atlas. A história da minha primeira e única experiência em Marrocos ficará para outro texto, mas saibam apenas que dos seis dias planeados para a viagem só usámos 72 horas. Dormimos uma noite em Ceuta, uma noite em Xexuão, uma noite em Arzila e à quarta noite estávamos em frente a uma tábua de queijos e enchidos, no sopé da Alhambra, com o Pedro a exclamar a frase que viria a ser o nosso mantra sobre a experiência: "o melhor de Marrocos é Granada". E realmente foi. Os dias passados na última capital muçulmana do Al-Andalus foram magníficos, a cidade deslumbrante. Tanto que passei anos a pensar nela, no regresso e em saber mais. Sobretudo passei a interessar-me por literatura que referisse ou, melhor, se centrasse em Granada, na Granada mourisca. Foi assim que cheguei "À sombra da romãnzeira", o primeiro romance do quinteto islâmico de Tariq Ali.

Em boa verdade tudo isto começa muito antes. Não sei bem quando, pois a memória, à medida que envelhecemos prega-nos partidas (e sobre isto não há nada melhor do que ler a Misteriosa Chama da Rainha Loana, de Umberto Eco), mas algures entre entre as reflexões da minha herança árabe-alentejana e do visionamento do Le Destin de Youssef Chahine. O Al-Andalus, que sempre fora uma presença na minha vida, por outros meios e outros nomes, tornou-se presente e fascinante. A viagem a Granada veio apenas recentrar as minhas reflexões e interesse numa cidade concreta (à falta de Córdoba ou Jaen). À sombra da românzeira foi o primeiro romance que descobri sobre a Granada árabe. Para mais, continua um bónus: tratava a Granada do fim do Al-Andalus, visto da perspectiva muçulmana. Como todo o quinteto, À sombra da romanzeira não é apenas sobre a visão muçulmana de mundos que os cristãos, ou até mais amplamente, os europeus, percorreram e partilharam (ou controlam) - o Al-Andalus, Jerusalém, Turquia, Sicília ou a Índia inglesa/Paquistão. É sobretudo um conjunto de ensaios romanceados (ou de romances ensaísticos, talvez melhor) sobre o modo como o islamismo produziu culturas abertas, cultas e cosmopolitas, servindo assim de óptimo tónico para os actuais tempos de preconceito contra o Islão, sem nunca perder um tom crítico contra as próprias. Além disso Tariq Ali levou a sério a investigação histórica para os seus romances. Alguns deles dizem respeito a períodos em relação aos quais tenho bastante interesse histórico, não apenas Granada, mas também a Jerusalém dos reinos cristãos. E foi bom poder sentir que viajava até aqueles tempos, enquadrado na história, mas mergulhado num romance.

Depois da queda de Granada em À sombra da romãnzeiraO Livro de Saladino escolhe como narrador o biógrafo de Ṣalāḥ ad-Dīn Yūsuf ibn Ayyūb e conta-nos a vida do sultão, depois califa, até à tomada de Jerusalém. É curioso que durante a leitura do livro, me apercebi que no cinema há poucas incursões a este período. Não fiz uma investigação muito profunda (e agradeço recomendações), mas com a excepção de Kingdom of Heaven, do meu querido Ridley Scott, não encontrei nada. Os reinos cristãos da Terra Santa são um objecto de interesse fascinante, testemunho de uma altura em que europeus vindos de todos os cantos do continente se deslocaram para o Próximo Oriente para guardar os lugares sagrados dos ataques dos infiéis e com isso se aculturaram a uma realidade profundamente diferente em nome de uma religião com a qual queriam evangelizar o mundo.

Em A mulher de pedra, vamos até ao final do século XIX e ao início da Turquia, acompanhando o círculo de companheiros e família de Mustafa Kemal Ataturk, através de uma família otomana. Apesar de ser um interesse recente, o legado do Império Bizantino/Otomano plasmado n'A mulher de pedra não conseguiu cativar-me o suficiente (talvez as expectativas com que vinha do Assassin's Creed Revelations não tenha ajudado). Mas o romance teve o condão de me despertar o interesse por Salonica depois de tantos anos e para mais por portas travessas, através de Ataturk, figura que também me fascina e que ali nasceu. Por causa de A mulher de pedra descobri que Mark Mazower havia escrito sobre ela em Salonica: City of Ghosts. Curiosidade das curiosidades o livro saiu em Outubro de 2005, um mês depois da minha viagem adiada a Salonica. Escusado será dizer que depois de ler o livro de Mazower fiquei ainda com mais vontade de ir a Salonica. E agora parece-me ser uma óptima altura para ir à Grécia.

O quarto romance do quinteto é o meu terceiro preferido. Um sultão em Palermo foi aquele em que aprendi mais e onde contactei com um universo mais desconhecido para mim. Trata-se de uma recriação do reinado de Roger II, rei da Sicília, visto e contado pelo famoso geógrafo muçulmano Al-Idrisi, que era um dos principais conselheiros e amigos do rei. Confesso que desconhecia a relação entre a Sicília árabe e o Reino cristão que aí se instalou depois da derrota dos árabes. O sultão do título do romance é afinal Roger II que reino sobre uma maioria de árabes e arabizou o seu próprio reinado, algo que o romance traduz com particular interesse. Eis um período sobre o qual quererei ler boa história.

O romance final do quinteto, A noite da borboleta dourada é aquele que mais se dispersa historicamente. Apesar de ser narrado na actualidade ele está constantemente a fazer-nos regressar aos primeiros dias do Paquistão e consegue ainda introduzir de forma cativante a história da minoria muçulmana Hui na China do Yunnan. Mais do que a descoberta da relação entre cristãos e árabes na Sicília, de que tinha alguma ideia vaguíssima, a descoberta da minoria Hui e da sua história intrigou-me e deixou-me com mais uma área histórica para investigar. De resto, agradou-me que o quinteto acabasse na actualidade, com referência ao 11 de Setembro e à luta contra o terrorismo fundamentalista islâmico. Visto de uma perspectiva de fundo, à luz de todos os romances do quinteto que já havia lido, A noite da borboleta dourada torna-se o último capítulo de um longuíssimo ensaio sobre o verdadeiro valor do Islão e o modo como ele pode ser ecuménico, tanto religiosa como culturalmente, sem perder a sua identidade. Para além de todo o interesse histórico e literário, gostei muito do quinteto islâmico por isso. Guardo-o como uma das minha boas experiências na literatura.

Uma nota final sobre o autor. E sobre mim, no fundo. Tenho desde a adolescência uma discussão acesa com um dos meus grandes amigos sobre o papel da biografia na bibliografia. Eu sou um fundamentalista do ocultismo biográfico. Apenas a obra vale. E o que do autor lá for, mais ou menos inconsciente. Tudo o resto é privacidade e/ou coscuvilhice. Daí que só me tenha interessado por Tariq Ali, quando já li o terceiro romance do quinteto. Devo dizer que não alterou minimamente o meu modo de ler e saborear os romances. 

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