quinta-feira, 2 de outubro de 2003

Ser solitário não implica ser auto-suficiente



Continuo na toada de alguns textos anteriores. Este é um tema sobre o qual venho tendo interesse em escrever. Acho que já maturou os anos suficiente e, finalmente, tenho algo de mais ou menos lapidado que posso partilhar. Por outro lado, acontecimentos recentes, fizeram-me dar um salto qualitativo muito grande em termos compreensivos. A mind expander if you will.



Talvez porque acho que o mundo é pleno de equívocos que não o são, sempre me fascinaram os paradoxos. Afinal, isso mesmo. Um paradoxo é uma contradição aparente. Sendo importante acrescentar que está na aparência a tónica do paradoxo. Por várias razões que se podem sintetizar numa só: muito do mundo está para além do que se vê. Não pretendo aqui convocar uma discussão clássica sobre o fenómeno e o númeno kantiano ou as ainda mais velhas discussões entre Parménides e Heraclito sobre a impermanência e a permanência do Ser. Mas a verdade é que o mundo sempre se revelou aos homens como muito mais do que aquilo que os sentidos apreendem. Ou apreendem logo.



Juntamente com a diversidade o não-aparente é, talvez, o tema que mais me fascina nesta existência a que vamos chamando vida. A combinação é, também ela, fascinante. A mim interessa-me o diverso e o não-aparente, mas, também e sobretudo, aquilo que é diverso sem ser aparente e por isso mesmo se permite ser combinado. O contrário de um paradoxo. Aqui há uma contradição exuberante que se demonstra depois não existir. Eu acrescente o inverso: um combinação improvável mas existente, explicada por uma diversidade, ela mesma paradoxal. Em esquema: paradoxo-diversidade-paradoxo. Ou seja, olhamos uma realidade e ela parece-nos impossível na sua diversidade - é aquilo que vulgarmente dizemos das pessoas e das coisas que não são compatíveis. Depois apercebemo-nos que a diversidade que as separa é ela mesma um paradoxo, assenta numa falácia e que portanto essa diversidade pode ser conjugada em existências partilhadas. Esta é uma das minhas fés no ser humano. Que toda a diversidade deve ser abraçada e, mais, pode ser combinada. Se conseguirmos olhar para lá do não-aparente. Neste sentido todo o paradoxo tem algo de profundamente analítico e racional ou místico. Racional pois só uma inteligência aguda e atenta pode descortinar os meandros da contradição aparente e devolver aos seus sentidos a verdade que se esconde por trás das sensações. E aí há uma importante sinestesia sensorial. Místico pois muitas vezes a forma que temos de passar para lá da contradição é acreditar na união que se esconde para além do aparente. Um passo de fé.



Acontece, pois, que muitas vezes associamos ou distinguimos realidades com base em contradições diagnosticadas que, na verdade, não existem. E que escondem paradoxos, que a ser resolvidos, demonstrariam nenhuma contradição ou associação haver.



Pense-se nisto. Algumas pessoas entendem que ser-se solitário implica a auto-suficiência. E, no entanto, tal não é verdadeiro para todos os casos.

O solitário não é, necessariamente, alguém que goste de estar sozinho, mas alguém que sabe estar sozinho. E isso faz toda a diferença do mundo, pois, por muito que também goste de se estar sozinho o simples facto de saber a solidão chama pelo Outro. Nenhuma solidão verdadeira é solitária. Eis o paradoxo.



Há dois tipos de solidão. Uma produz o solitário, outra produz o temerário e, nalguns casos, o louco.



A solidão é algo de profundamente necessário ao homem. É na solidão que ele se consegue ouvir, que consegue ponderar todas as sensações e emoções que recebe do mundo. A solidão, esse espaço invisível do pensamento e do sentimento é o núcleo da humanidade. Mas é apenas um núcleo, um germe, uma vagem. A solidão tende para a criação. E a criação é o florescimento no mundo, nos outros. No Outro, que se escolha para iniciar uma nova solidão: a solidão partilhada em que de novo se partirá para o mesmo processo e assim indefinidamente em filhos, amizades, amantes...



O solitário ele-mesmo abraçou a sua solidão, o seu espaço interior, tantas vezes caótico, repositório de traumas e realidades ocultadas da nossa percepção. É, pois, compreensível que muitos não se atrevam a encará-la e optem por se debruçar ao mundo primeiro. Diria que a ordem dos factores aqui é dispensável. Tanto bem quanto mal trará uma opção ou outra. O solitário tomou a primeira, mergulhou em si e na sua solidão. Tal não implica que se tenha tornado um eremita e fugido do mundo. Significa, isso sim, que optou por se refugiar em si, não como um egocêntrico que se projecta no mundo como seu eixo, mas como alguém que se estuda e se conhece. E muitas vezes tem, aliás, um ego desconhecido de si mesmo. O solitário habitua-se à solidão, vive com ela, parte dela para os outros. É ela que, aos poucos, o vai devolvendo ao mundo até se tornar um fluxo e refluxo com ele. Tornamo-nos, então, pulsantes de solidão e partilha, ora estamos sobre nós ora sobre o mundo, num equilíbrio em que um depende do outro. O solitário está bem em solidão mas não se basta com ela, pois, na verdade, a solidão é apenas um lugar, irreal e invisível, mas muito forte e presente, onde o solitário se reencontra e prepara os gestos do mundo.



O temerário, como está bom de ver, seguiu o percurso inverso. Temeu-se. Foi-lhe difícil ou insuportável deixar-se sozinho consigo mesmo. Não suportou as vozes e os pensamentos que lhe ocorreram e foi em busca de si ao mundo. Nesse aspecto sendo semelhante ao solitário. Mas o temerário vai em busca de si no mundo sem saber de si. Busca algo que não sabe e o eu que busca não se sabe também. Só a solidão o poderia ajudar mas eis o que mais teme. Pode perfeitamente viver-se assim durante muito tempo mas um dia terá de confrontar-se a solidão. O mesmo é dizer o eu. Pode não descobrir-se tudo. O solitário ele-mesmo nem sempre aí se descobre. Mas avança até ao limite. Aliás, o desejável é que a solidão nos devolva ou revele não o nosso eu (que espero maior) mas a vontade e a convicção de que, a partir de um certo momento, o resto de nós não se encontra na nossa solidão - em nós - mas no mundo. Seja no Outro, nos outros, numa causa, numa ideia. Ou mesmo em deus. O solitário que parece permanecer solitário na verdade projectou-se há muito no universal. O temerário não enfrenta bem o eu. A solidão confunde-o e provoca-lhe maus pensamentos. Por vezes diagnostica-se traidor de si mesmo, outras acha-se vazio e sem sentido. Começar daí a refazer-se soa-lhe impossível. Vai para o mundo e aí está a ilusão: todos achamos que os temerários não são solitários, precisam dos outros. Num certo sentido não deixa de ser verdade. O temerário precisa dos outros mas sobretudo porque precisa de si. Os outros permitem-lhe ser algo que não controlam totalmente, onde se podem apoiar e desculpar, onde podem construir-se divididos. Se os outros cedem ou não surgem, se o mundo prega partidas e obriga o temerário a confrontar-se consigo eis o terror. O temerário enlouquece. Pois nenhum louco está sozinho. O louco é, na verdade, o menos solitário dos humanos. O louco está sempre acompanhado de um mundo que cria e vê, tão irreal quanto real, onde o eu não se confronta antes actua. Eis que o círculo se fecha e o louco se aproxima, como alguns solitários, eles-mesmos, de deus.



Neste sentido o temerário não é auto-suficente mas isso não é necessariamente positivo pois faz dele um dependente no sentido de sujeição, mesmo que imperceptível. Tal enfraquece ou entorpece a alma. O solitário é, também neste sentido, auto-suficiente mas, justamente por isso, não o quer ser. Quer ser dependente, aqui, num sentido positivo, como partilha assumida, em que o solitário, por se conhecer e conhecer a solidão, traz para a dependência - chamemos-lhe partilha, união com o Outro - o conhecimento de si, o que quer e não quer: a segurança de si. Eis a base de toda a fusão humana.



O solitário ser auto-suficiente é neste sentido um não paradoxo, pois ele é, na verdade, o verdadeiro dependente: é-o por escolha sua e não por medo de si ou desconhecimento de si. Ele não está com os outros porque não tem mais possibilidades - horroriza-o estar sozinho - mas porque entre estar sozinho ou com alguém ele prefere estar partilhando-se. E isto tem, obviamente mais valor que a partilha entre temerários que na verdade se suportam de desmoronamentos próprios que a introspecção, o olhar profundo e crítico sobre si traria.



O solitário utiliza a solidão com que está confortável, onde se descobriu parcialmente, aos seus fundamentos, para se projectar nos outros, sem medos, antes com uma profunda vontade e necessidade de se continuar a encontrar no Outro e do Outro ser o encontro. Juntos os solitários são, na verdade, a morte da solidão. Os temerários, a solidão oculta e latente.



Felizmente há a possibilidade da diversidade, de que falei no início: solitários e temerários combinarem-se, os primeiros aprendendo a sensibilidade do mundo que os outros trazem e os segundos fortalecendo-se na familiariedade da solidão que os primeiros podem mostrar e ensinar.



Solitários e temerários de todo o mundo: uni-vos!

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