domingo, 26 de outubro de 2003

Memórias ou a Recuperação dos Sons

As memórias são grandes teias aspirantes. Quando se formam podem fixar todos os elementos naturais e intelectuais existentes num momento. Assim, com o som. É possível e frequente que canções mas também álbuns inteiros ou mesmo músicos e bandas fiquem associados a um momento das nossas vidas, a uma pessoa. Eis o que de mais banal há, eis o que sempre me perturbou mas a que me resignei.
Morphine, por exemplo, estará para sempre ligado aos primeiros dias na Juke Box da Rua da Fé, pois, por esses dias apenas isso ouvia e por esses dias conheci I., a minha loucura da altura.
José Padilla, Café del Mar, vol. 6., é Barcelona, 2ª vez. Mas estes são os exemplos de que me lembro porque verdadeiramente alucinante é, por vezes, colocar, incauto, um álbum na aparelhagem, daqueles há muito não ouvidos e, de repente, ser transportado a um dia, a uma discussão, a uma tristeza, a um trimestre, a uma casa.

Hoje revoltei-me. Havia já começado, esta semana passada, sem o saber. Mas hoje deu-se a revolta completa, assumida. Em nome de uma memória maior, em nome da vida, da morte, da liberdade, sempre tão genéricas e confusas que legitimam tudo, incólumes.

Elliott Smith, começando também por ser Barcelona, 2ª vez, tornou-se - assim acontece - dor profunda, meses de angústia em que só ele me escutava, só eu o escutava, pensava. Não estava nada bem, mesmo nada. E parecia-me que ele compreendia a intensidade e a profundidade do que estava a sentir. Também ele cantava o que eu sentia (e cantava para mim). Também ele sofria em expressão íntima.
Quando esses tempos mais fundos passaram descobri com horror que ouvir Elliott Smith, era ser transportado para o coração da dor, para esses meses de sofrimento, que a custo tinha ultrapassado. Durante meses não o consegui ouvir. Eis o efeito pérfido da memória.

Há três dias, Elliott Smith matou-se. Estava em casa quando o descubro. Dou dois passos e coloco na aparelhagem Either/Or - repeat all. Assim adormeço, assim acordo.
Mas só hoje me lembro da memória do sofrimento anterior, só hoje reparo, com surpresa, que estou a ouvir Elliott Smith, feliz - veja-se o paradoxo - apesar da razão, pois ouvia-o por ele. Ouvia-o, agora, de novo. Sei que se formaram novas memórias. Sei que o recuperei. Sei que Elliott Smith, comigo, se libertou com a morte. Ouço-o, de novo, livre. Ouço-o, de novo, como o Elliott Smith que descobri, com calma, em Barcelona, onde os dias eram serenos, na inestimável companhia do Cigano e de amigas.

Recuperei o seu som, a sua figura, a sua voz e as suas palavras.

Elliott Smith está morto. Vive Elliott Smith!

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