sábado, 18 de outubro de 2003

Comunismo e Música Brasileira



Aqueles primeiros 15 anos de vida, diz Piaget, são decisivos para a construção da nossa alma mater. Coisas que vamos levando pelos dias, quase sempre inconscientes e cujo único propósito pode ser, em apenas uma ocasião, em toda a nossa vida, nos permitir sobreviver ou criar. Uma memória, uma virtude, um defeito, uma explosão, todos escondidos nos nossos mais recônditos cantos, afastados do Eu que vamos sabendo, ou querendo, ou construindo, ou outra coisa qualquer.

Não sei se isto é verdade para toda a gente mas revelo-o verdade para mim. As experiências dessa fase da minha vida (recente, como sabem sou só um puto) marcaram-me de formas tão impressivas e profundas que durante muito tempo, mais do que me rebelar contra a impotência dos seus efeitos, deixei-as operar livremente em mim, voltei-lhes as costas, consciente de que um dia me reencontraria com elas.

O comunismo e a música brasileira são talvez as duas mais fortes. Lembro-me que na casa onde cresci havia um enorme poster do Che Guevara na porta da sala, todo a vermelho e preto. Lembro-me de pessoas em minha casa a falar das lutas na Sierra Maestra, no colonialismo, nos tumultos na Grécia (bolas, do que um gajo se lembra). Amarcord de muitos livros sobre o comunismo, incluindo o monolítico Das Kapital que li como se lê um romance, aliás, a seguir à Guerra e Paz (só anos mais tarde percebi a ironia de tudo isso...). Tudo isto que me lembro é, no entanto, nada quando comparado com a noção que tenho de que me recordo de muito pouco...que só intuo pelas reacções que em mim produziram. No que toca ao comunismo, acho que esta Esquerda automática, esta osmose em que vivi, fez-me querer conhecer outras hipóteses, outras visões do mundo. Foi muito complicado explicar, mesmo a quem estava perto de mim, muitos anos passados, que o meu interesse pela Direita era a natural curiosidade pelo diferente. Infelizmente nem sempre assim tão natural. A vontade de sair da terra natal e ficar deslumbrado com outras cidades. Passei a adolescência a tentar aprender e perceber a Direita, quando todos à minha volta se agitavam de Esquerda, entre PSRs, UDPs, PRDs, PSs e não alinhados (infelizmente já perdi o MES, que só a muito custo recordo). Como explicar que estava com eles, até demais?! Que estava farto da Esquerda, com que havia crescido, mas que estava inexoravelmente em mim, primeiro por cultura e aprendizagem, depois por reconhecimento, estudo e natureza. Como explicar que, no entanto, não queria ser cego, que já nessa altura o paradoxo e a diversidade me faziam sentido, que as coisas que somos e assumimos têm mais valor se conhecemos e assumimos aquilo que não somos, aquilo que decidimos não ser, aquilo contra o qual batalhamos. Eu não sou contra a Direita por que são Eles, do outro lado da barricada, sou-o porque os tento conhecer, tento aprender as suas ideias e confrontrar-me, primeiro a mim depois a eles, com as suas contradições e discordâncias.



O mesmo me aconteceu com a música brasileira. Cresci a ouvir Caetano, Alcíone, Gilberto Gil, Dominguinhos, Chico Buarque, Betânia, Gal Costa, Tom Zé, João Gilberto, Elis Regina, Raimundo Fagner. Não tive hipótese de escolha. As cópias de Primária, ao Sábado de manhã eram ao som destas mulheres e homens. Ouvia-se de tudo, desde a MPB a forró, passando por outras coisas que não lembrariam ao diabo. Quando comecei a poder escolher eu mesmo a minha música compreenderão, ou talvez não, que música brasileira era the last thing on my mind. Não tanto por estar farto mas por achar, mais uma vez, que o mundo tinha de ser mais. Tinha de ter mais. Aqui a estranheza adolescente foi menor uma vez que muitos dos que me rodeavam não tinham qualquer ligação com a música brasileira. No entanto quando comecei a dar-me com pessoas que ouviam mais MPB ou quando os meus amigos o começaram a fazer...como explicar-lhes que não se tratava de não gostar ou conhecer a música brasileira...mas que com aquela idade estava farto! Sounds a little pretentious let's face it. Well...fuck...but it was true... De qualquer modo eu sentia, cá dentro, que só precisava de tempo para descansar, que um dia voltaria a reencontrar-me com ela, com a música brasileira e que nessa altura tudo aqui dentro acordaria e recordaria. Esse momento aconteceu não há muito tempo, quando passeava pela Fnac do Chiado. É verdade que já alguns anos antes desse momento ouvia, por vezes, Marisa Monte mas nada de especial...foi nessa tarde ao tropeçar com a Bebel Gilberto, na sua estreia. Ouvi o CD todo do princípio ao fim, feito parvo, atrasei o meu regresso e, claro, comprei-o. Alguns meses depois, lá estaria, nas cadeiras do Grande Auditório do CCB a ouvi-la naquele concerto prodigioso! Estava iniciada a minha reconciliação com a música brasileira. Podia finalmente mergulhar nos vynis caseiros e recuperá-los por mim mesmo, sem imposições e desenhar eu próprio as minhas trajectórias, sempre com a experiência estranha de, cada vez que ouço música brasileira, se sobreporem camadas de memórias, com beijos de namoradas, à boca do fim dos teen years e outras com beijos da minha mãe a dançar comigo nos braços.



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