O Marinho morreu. O Marinho já morava cá no bairro quando vim para cá há oito anos. Sempre me tratou por vizinho. Eu tratava-o por Marinho. A casa que era dele fica bem em frente da minha. Casinha pitoresca, sempre achei. Cabisbaixa, de dois andares, mas com umas pombas brancas de loiça nuns beirais. Umas anti-gárgulas.
O Marinho gostava muito dos miúdos e os miúdos do Marinho. Muito bem educado, o Marinho cumprimentava-os sempre que os via e metia-se com eles. Comecei a falar-lhe nos interstícios desta relação. E o Marinho ficou a fazer parte daquele círculo exterior da vida, onde não se entra bem - ele nunca entrou na minha e eu nunca entrei na dele - mas onde se partilha um espaço público comum e rotinas comuns. Uma vizinhança. Uma cordialidade. Uma gentileza.
O Marinho gostava de andar de bicicleta. Muitas vezes correndo eu no Monsanto passou por mim guiando a sua BTT e lá nos cumprimentávamos num rompante. Ainda há pouco tempo tinha arranjado a bicicleta do meu filho mais velho e um dia apontou a matrícula dum carro que derrubou a minha vespa. Uma vizinhança.
Não sei o que fazia o Marinho. Acho que não trabalhava e por isso é que sempre o via, defronte da casa, nos velhos silos de cereais, conversando, fumando, gastando tempo. E hoje morreu.
Deus, sabes que de ti espero tudo e vamos andando assim, mas hoje, com esta, fiquei fodido. Pensando porquê - porque tanta gente à minha volta morre - percebo que a morte do Marinho é também a morte de uma gentileza, talvez a melhor gentileza, aquela que tinha todas as desculpas para não ser. Intuí sempre na vida do Marinho muita dificuldade, muita adversidade, mas o círculo da vizinhança não me deixou fazer mais. Eu não me deixei fazer mais. Uma vez, num Natal, ofereci-lhe um espumante e algumas vezes dei-lhe limões. Foi isto que fiz pelo Marinho. O Marinho sempre gentil, esmaecido, pairando pelo bairro, alimentando-se mal, dizem-me agora. O Marinho morreu.
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