domingo, 23 de janeiro de 2011

Exercícios para endurecimento de lágrimas

Maria Sousa

A Língua Morta esteve muito bem quando decidiu publicar o primeiro livro de poemas da Maria Sousa. Poetisa há mais de uma década (e não me venham com a história da palavra poeta ser neutra que não há paciência), a Maria sabe bem que é preciso não apenas apurar a escrita (a forma e o conteúdo, claro) mas sobretudo o tema. O tema é algo pouco aprofundado na crítica portuguesa mas joga um papel fundamental na nossa ligação afectiva a uma obra poética. Seja um primeiro livro, seja o corpus de uma vida.

Os Exercícios para endurecimento de lágrimas são um ensaio poético sobre a ausência e a forma de solidão que ela provoca. Uma solidão quase sempre tão atroz quanto criativa.

"com a garganta cheia de sombras
(sítios que antes sublinhavam a tua ausência)
quero dizer-te que a voz é um juntar de perdas
quando neste lado da fala não há janelas para o silêncio
fica um arrepio de insónia a escrever vazios"

Com este tema em paz com a autora a forma e a riqueza metafórica florescem melhor. Mas florescem podadas (e, assim, melhor). A Maria Sousa maneja como poucos o vocabulário e a sintaxe da ausência e do seu mundo, o esquecimento, a perda, a dor, a memória, a nostalgia, a saudade, a angústia, a ansiedade, a capacidade de recriar o outro para compensar o seu desaparecimento.

"tenho-te na pele como voz
que ainda não tive tempo de despir

faço uma pausa, escolho um vestido novo
mas mesmo assim fico um adereço imperfeito
no teu esquecimento"

É assim especialmente perfeita a combinação entre este mundo, esta semântica e as evocações, mais do que naturalistas, elementares, que consegue cativar: lembrando que a ausência nos convida, ou força, a olhar para as coisas mais comuns e essenciais com um olhar novo.

"escrevo o que ainda conheço
nomes de ruas pássaros árvores
monólogos de quem ainda fala alto
é a minha voz ou a tua?
como se tudo fosse uma metáfora sem fim

lá fora a chuva confunde-se com gestos
falamos do tempo, ponte entre o silêncio e o nada

ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me"

A sinestesia profunda que convoca é de tal modo intensa que Os exercícios para endurecimento de lágrimas são terrivelmente eficazes. Tome-se o caso deste vosso escriba, para quem a solidão é um lugar de luz e felicidade e para quem a ausência raramente se fez arroio da face: estou nesta estreia da Maria como estou perante uma experiência naturalista que me abre um novo mundo. Um manual para sentir a ausência e passar para o seu avesso.

Pode ser difícil encontrar esta pequena gema mas será apenas mais um prazer a juntar ao que encontrarão. Busquem-no.

"...

eu, parada no meio do quarto,
direi que não sabia que na solidão se grita alto
para sobreviver ao medo"

3 comentários: