segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O misterioso feminino

Para uma pessoa que se regozija na temperança o diagnóstico de uma emoção verdadeiramente avassaladora é uma felicidade inominável. Refiro-me a uma emoção cuja consciência permita a percepção de uma espécie de alteração da realidade: as coisas deixam de ocupar os seus lugares nas hierarquias e prioridades pessoais e institucionais; redesenham-se os prazos, os caminhos, os modos, os gestos para corresponder a uma evocação intensa, poderosa, dominadora. Sublinho, quanto mais nos reconhecemos na temperança, na placidez, na tranquilidade, mais impressionante nos parece a irrupção desta sensação ou sentimento (não sei bem).

Não arriscarei dizer que todos nós temos este elemento alquímico, em rota de colisão imprevisível com o nosso código genético, apenas para produzir uma mutação terrível e deslumbrante ao mesmo tempo. Mas desconfio que sim. E é importante que a conheçamos, como um preliminar do prazer. Seja porque confiamos que assim poderemos dominar esse sentimento que nos descontrola, seja porque antecipamos assim esse estado maior de comunhão com o outro de nós (e o outro de nós é cada vez mais importante face ao actual estado civilizacional) e nos podemos deleitar a estudá-lo antes que se torne no tal objecto irresistível.

No meu caso é o misterioso feminino, como se fosse um elemento ainda por descobrir na tabela periódica. O Zé Manel (esse Tom Bombadil da minha vida) uma vez disse algo que me acertou em cheio como um dicionário de eu mesmo-português: há uma porção de mistério nas mulheres que não importa conhecer mas, justamente, manter, como uma tentação insaciada. Foi então que percebi o que eram as minhas alterações de consciência: a choque frontal com esse mistério sedutor e irresistível. Estou a falar-vos de algo primário, de uma recombinação atómica, que produz nova existência. Ao pé disto o Large Hadron Collider é uma oficina de metalo-mecânica. O misterioso feminino é algo que utiliza a beleza como um motor de arranque mas que contém em si a essência da paixão. E a atracção tem sempre algo de misterioso e, para mim, de feminino.

Esse elemento, que é também um estado, altera o normal acordo da minhas moléculas e a rotina normal das minhas sinapses, transtorna o concerto dos impulsos eléctricos cerebrais, recompondo-me como um outro semelhante de mim, que talvez ainda mereça o meu nome, mas que eu sei diferente. Esse toque de alteridade, à mão de se poder tornar identidade, é uma das supremas experiências da existência. Há quem gaste rios de dinheiros em substâncias ilegais só para o conseguir; há quem se converta a religiões; e houve até palavras - misticismo - inventadas só para descrever a vivência profunda e continuada deste estado. Para mim, ele é imprevisível e não o busco no misterioso feminino porque é algo que não se pode encontrar mas que nos encontra a nós. Na melhor das hipóteses podemos viver perto da fonte. E esperar. Surgirá como uma vontade de me esgueirar por dentro do saber que tem de si própria dada mulher e partir daí para a experimentação do mundo, através de uma recombinação de hábitos e de formas, tentando possuir o tema da sua vida - essa síntese simbólica das nossas virtudes e vícios - como uma soma de predicados, que possa condensar um ser - uma mulher - numa substituição apropriável de si. E - eis a redenção que espero - apenas a manutenção do mistério pode impedir essa fome (degustativa) de ser satisfeita, mantendo-se o feminino.

Creio que nada pode existir sem uma dose de mistério, daí acreditar na vital importância da solidão, mas a sua verificação específica no feminino é a minha possibilidade de ser outro.

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