sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O Direito tem as costas largas (mas não assim tão largas)

Há alguma corrente de opinião, que não consigo precisar e não sei sequer se tem homogeneidade, que pretende centrar a questão do casamento entre homossexuais numa questão jurídica.

É evidente que a questão é também jurídica e sê-lo-ia sempre mas é preciso cuidado com o que metemos neste saco. E é, normalmente, quem menos percebe de Direito, que acha que a culpa é toda do Direito e que por isso...mude-se o Direito, sem mais.

Pois bem. A primeira palavra talvez deva ser para defender que o Direito é, antes de mais, um modo de pensar. Um modo de interpretar a realidade, diferente de qualquer outro. O jurista olha para a realidade que existe e interpreta-a, extraindo normas dessa realidade. Poder-se-á dizer que no mundo moderno, dominado pela lei e pelo legislador, ao jurista não resta mais do que olhar para a lei e daí extrair a norma e nada mais. Mesmo que tal seja verdade (não concedo, por enquanto) surgem, de vez em quando, casos que demonstram que não é sempre assim. O casamento entre homossexuais é um deles.

O que está aqui em causa é algo que um filósofo de Oxford, de origem grega, Nicos Stavropoulos, chama um desacordo substantivo, que nada tem de conceptual. Este autor expõe, com grande clareza, a diferença que existe, entre não estarmos de acordo, por exemplo, com o conceito de casamento, porque estamos em erro sobre o que quer dizer esse conceito (e, portanto, quando nos apercebemos do erro, percebemos, na verdade, que não há qualquer desacordo); e haver desacordo sobre os elementos que devem integrar um conceito. Este tipo de desacordo é um verdadeiro desacordo substantivo, decisivo para o Direito e que este acomoda, consoante a prevalência de teorias que expliquem melhor (de forma mais convincente e aceitável) o conceito em causa. Acrescente-se que estas teorias, sendo jurídicas, integram o tal modo de pensar jurídico de que falava - argumentativo, retórico, lógico - que no entanto não é alheio a contributos de todos os quadrantes.

Veja-se, pois, o exemplo de casamento. Não há aqui uma discussão conceptual, em que uns estão em erro sobre o conceito (haverá, em alguns casos, claro) e outros referem o conceito certo. O que há é um conflito de teorias, que reflecte, por sua vez, um conflito de interesses, entre quais os elementos que devem ser considerados essenciais para o conceito de casamento. E prevalecerá, não devem restar dúvidas, de um ponto de vista jurídico, não apenas o conceito mais democrático - aquele que o povo quiser, digamo-lo assim - mas aquele que melhor for suportado, teoricamente, pelo ordenamento jurídico português, tal como ele existe neste momento.

Ora, um ordenamento jurídico - graças a Deus - é uma mistura complexa da sedimentação dos séculos, de forças conservadoras e progressistas, que se digladiam, de interesses e contra-interesses que procuram impor-se normativamente. A todo este caos tem o jurista que trazer ordem. E isto aplica-se igualmente ao legislador.

Seja qual for a decisão hoje na Assembleia da República - e ela está anunciada - a questão é jurídica apenas na medida em que o jurista está observando a realidade para perceber qual a melhor teoria para explicar o conceito de casamento.

Para uns é a de um contrato onde, por exemplo, o elemento de filiação, acompanhamento dos filhos, etc, é decisivo. E, como tal, negam a possibilidade do casamento entre homossexuais por tal se opor ao conceito de casamento constitucional.

Para outro o casamento é um contrato onde avulta, sobretudo, o elemento de comunhão de vida em comum, com ou sem filhos, conceito este que não excluiria o casamento homossexual, se este fosse legislativamente previsto.

Há, pois, uma discussão substantiva e ela, como sempre aconteceu na História do Direito, será ganha pela teoria que melhor explicar a realidade. A teoria pode tentar persuadir a realidade, é verdade, mas tal expediente não vai longe se não houver suporte (embora Ptolomeu se tenha aguentado vários séculos...).

Daí que, o problema só venha a ser jurídico quando já não houver um problema ideológico e sociológico para resolver: quando for clara a vontade de mudança do enquadramento normativo. Aí terá o Direito que interpretar tal intenção e confrontá-la com a realidade. Mas, infelizmente, não parece que estejamos ainda aí e por isso, ao Direito pouco resta, tenha ou não as costas largas.

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