quinta-feira, 9 de outubro de 2008

H

Foi algo difícil começar este texto, escolher o seu princípio. O início das coisas, como de um texto, tem o seu papel no rumo da realidade. Pode ser um empurrãozinho, uma irrupção, um meneio, um acorde.

Tremi, há algumas horas à novidade esplêndida (mas também algo ctónia) de um novo livro de Herberto Hélder. Se há alguém que admiro pelo caminho da obra é Herberto Hélder. Admito que parte desse fascínio, uma parte ancilar que potencia o fascínio que retiro da experiência dos seus versos é motivada pela aura de ermitério em que Herberto Hélder quer consubstanciar a sua vida. É evidente que também me agrada que ele possa ser usado como exemplo de alguém que entende que a obra é uma coisa e o restante silêncio do escritor é outra. Não estou contra o poeta ou o escritor interventivo, comprometido, engajado. Mas não quero que se pense que isso é o zénite e exemplos como os de Hélder o nadir. Daí que essa ausência paradoxal do poeta em vida tenha, creio, como consequência uma concentração carbónica da sua criação. É ela que resta, exposta, aos sentidos dos leitores. E o poeta, se houver que chegar a eles, chegará pela criação. Faça-se isso como se fizer. No caso de Herberto Hélder a poesia é substância. Meditemos nesta palavra e não a deixemos passar como mais uma para servir um propósito banal. Trata-se de conseguir a alquimia suprema da poesia: tornar as palavras um modo de ser. Uma substância que nos tange o corpo e o espírito e nos afecta como uma pedra, uma chuva, um beijo, um rasgão.

Da poesia de Herberto Hélder não resta pois memória do lido, do falado, do declamado, do cantado, mas memória do poema, memória mais ainda do que do poema: memória da coisa. Do objecto poético, que não podemos antecipar, nem mesmo quando o estamos lendo, mas que se revela em nós, por nós e para nós. Esta aproximação ao religioso, não é um acaso. Liturgias à parte, a poesia cumpre sempre uma função mística de ligação entre o que somos e tudo o que, restando, nos rodeia e pode ser.

Já aqui o disse várias vezes e importa agora, no dia em que é lançado A Faca Não Corta o Fogo, que Herberto Hélder é o maior poeta português vivo e um dos maiores entre todos. E, também em dia de anúncio de Nobel da literatura, lembrar que é ele que o deveria ganhar. Provavelmente para não o aceitar, como fez com o Prémio Pessoa em 1994.

A edição actual do Jornal de Letras (de 8 a 21 de Outubro) contém nas páginas 22 e 23 (23, pois claro), um artigo sobre o autor. Aí descubro mais um aspecto para acrescentar à minha admiração por Herberto: no meio da sua reclusão, do seu aparente afastamento do mundo - que só o pode parecer a quem não lê a sua poesia - subscreve em 1993 um pedido de atribuição de um subsídio a António Gancho - poeta magnífico, que aqui vou, sempre que posso, relembrando - "há 26 anos internado no hospital psiquiátrico do Telhal". Esta edição é, além disso, essencial para se ficar a saber um pouco mais sobre Herberto Hélder.

Mas deixemos o homem e vamos à poesia. Depois de Ou o Poema Contínuo, publicado em 2001 e que em grande parte republicou Poesia Toda...

neste exacto momento do texto parei para ligar à Almedinda do Atrium Saldanha, onde irei passar esta tarde, para perguntar se já estaria disponível A Faca Não Corta o Fogo. A menina que me atende pede um momento e ouço: O Herberto já chegou? Sorri. Não sei bem porquê, creio que sobretudo pela familiariedade emprestada à pergunta.


...embora com alterações. E são essas alterações, esse contínuo descobrir, reconstruir e voltear do poema que fazem da poesia de Herberto algo que explica todo o Wittgenstein junto (creio que ele teria vivido melhor, no período pós-Tratactus, se tivesse com ele Ou o Poema Contínuo). Se é verdade que há muito silêncio para respeitar, nas impossibilidades da palavra, é ainda mais verdade que um modo de vida como o do poema de Herberto pode conter em si todo o significado do mundo.

Não sei como se chegou à expressão a hora H mas é bom que esteja apenas à distância de um livro.

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