segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Binómios, desvios, paradoxos

Adepto que sou de binómios explicativos do mundo (sobretudo quando se apresentam como paradoxos) consegui, recentemente, apurar algumas questões filosóficas que me interessavam, integrando-as num binómio simples, que pode formular-se através de uma alternativa:

1. há quem se emocione com a razão; e
2. há quem raciocine com emoções.

Evidentemente este binómio é, de um ponto de vista empírico, verificável apenas em situações mistas e só teoricamente se poderia admitir que um ser fosse só 1. ou só 2.

Isto dito, creio, contudo, que a esmagadora maioria das pessoas tende para um dos lados. O mais curioso deste binómio é que esconde o que realmente quer dizer ou, dito de outra maneira, sugere o contrário do que realmente significa.

O problema jaz no facto de as emoções ao contrário do raciocínio não estarem dependentes de nenhum objecto exterior. X pode emocionar-se com qualquer coisa mesmo que essa coisa não seja em si emocionante. Este é um elemento fascinante das emoções: todo os seus objectos são objectos de uma emocionalidade reflexa, isto é, nada é emocionante em-si, tudo é emocionante dependente das emoções daquele que se emociona. É verdade que o verbo emocionar parece convocar a ideia de que algo nos emociona, algo exterior a X o afecta de forma a emocioná-lo. Porém, esse é o estranho paradoxo das emoções: elas não emocionam ninguém que não se possa sozinha emocionar.

Repare-se como isto é o oposto da razão. A razão está dependente de objectos exteriores. Apesar de poder pensar em si mesma (v.g., o famoso eu-penso kantiano) eu não consigo raciocinar sozinho, tenho que raciocinar sobre algo e ao raciocinar sobre algo, apreendo esse algo, na medida em que uma sensibilidade, uma imaginação e um entendimento mo permitem. Tal, enfim, permite que raciocínios sejam objectivos ao contrário das emoções que são subjectivas (embora possam ser agrupadas em categorias objectivas, o que é coisa diferente).

Assim, se afirmo que há quem se emocione com a razão estarei a contradizer-me? Certamente, uma vez que estou a descrever um estado distinto dos que acabei de indicar como norma. Ou seja, descrevo um desvio à norma. Um comportamento desviante. A coisa aquece.

Alguém emocionar-se com a razão (como alguém raciocinar com as emoções) carece ainda de uma explicação suplementar: o "com" é aqui utilizado no sentido de indicar a faculdade "com que" X procede a uma determinada operação. É aqui que a contradição começa. É uma contradição no sentido em que X pode serrar com um martelo ou martelar com uma serra. Algo não bate certo.

Se X se emociona com a razão deveria dizer-se que raciocina. Porém, o que esta afirmação pretende sublinhar é que X ao utilizar a razão, enquanto faculdade, utiliza as emoções, enquanto método. Isto obviamente não deixa de produzir os seus efeitos estranhos. Ora a razão está preparada para analisar o objectos, para lhes descobrir uma representação que é objectiva, isto é, verificada universalmente e partilhada entre todos os seres de uma mesma espécie. Porém, ao utilizar o método emocional X prescinde da objectividade do objecto e prefere uma subjectividade do objecto - já aqui falei disto - chamemos ao emocionar-se com a razão: a parede azul. X pensa sobre as coisas como se as coisas fossem um reflexo do que pensa sobre as coisas. Isto é bonito e misterioso e eu tenho quase a certeza que há muito bons poetas para aí a fazer isto mas não deixa de levantar os seus problemas. Infelizmente não está no escopo deste singelo apontamento fazer aqui tal levantamento.

Se, por outro lado, X raciocina com as emoções, verifica-se o cenário oposto: é a emoção a faculdade e o raciocínio a operação. X sente aquilo que o objecto é. Ele é um com o objecto, ao ponto de se dizer que ele é objectivo na medida em que ao sentir X se sente o objecto, objectifica-se. Se tal é possível ou não está para além desta breve análise mas tem sido aventado pelos místicos de todo o mundo desde o início da criação.

E entretanto esqueci-me do que queria dizer quando comecei a escrever isto.

Ah, exacto: ora, sendo qualquer um dos pontos uma impossibilidade há contudo uma função interessante no diagnóstico destas situações: elas permitem deitar luz sobre a realidade oculta dos desajustados e desviantes deste mundo. O que nos leva à moral desta história:

são estas condições que explicam que determinadas pessoas consideradas muito emocionais ou muito racionais exibam, amiúde, comportamentos incompreensíveis. Tal é, contudo, totalmente compreensível se, num olhar mais atento, verificarmos que na verdade aqueles que julgávamos emocionais estavam raciocinando com as emoções e aqueles que julgávamos racionais estavam sentindo com a razão.

2 comentários:

  1. quis mesmo dizer kantiano? ou foi lapso? refere-se ao cogito cartesiano?

    um seu leitor,

    a. nogueira

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  2. caro a. nogueira, quis mesmo dizer o Eu penso kantiano tal como é referido na Crítica da Razão Pura em B 131-32. Um abraço,

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