quinta-feira, 3 de julho de 2008

A cadeira sem costas nem braços (um post sobre o casamento entre homossexuais e Manuela Ferreira Leite*)

Uma cadeira, definamo-la assim: é um objecto com 4 pernas, uma superfície que permite o assento e um encosto, quando aplicáveis, podendo ou não ter apoios para braços, também quando aplicáveis.

Esqueçamos agora que uma cadeira pode ser construída para estar para sempre num museu, onde nunca ninguém nela se sentaria e admitamos que nesse caso temos ainda uma cadeira porque o objecto a que chamamos cadeira tem não apenas a potencialidade mas foi pensado, enquanto categoria, para permitir que alguém nele se sentasse, encostando-se.

Um banco, definamo-lo assim: é um objecto com 4 pernas e uma superfície que permite o assento. Ou seja distingue-se da cadeira por não ter encosto (sendo que é interessante pensar que nome teria o objecto que pudesse ser descrito como tendo 4 pernas, uma superfície que permite o assento e apoios para os braços, mas deixemos agora esta questão).

Consideremos agora a hipótese de alguém que parte o encosto de uma cadeira ficando esta reduzida a um objecto com 4 pernas e uma superfície que permite o assento. Teremos a partir daí um banco? Ou teremos uma cadeira sem encosto? O problema está lançado.

Poderá o conceito de cadeira ainda acomodar a perda de um elemento que parece ser essencial e que, mais, permite distinguir a cadeira de um outro objecto, o banco?

Tudo boas questões. Embora não nos possamos encostar, pode dizer-se que em todos os casos, independentemente da discussão conceptual, nos podemos sentar. O que já não é nada maus nos tempos cansativos que correm.

Consideremos agora o casamento. Este, enquanto conceito legal (e, presumamos, social, pelo menos até este momento) define o casamento como o contrato entre pessoas do mesmo sexo para prossecução de determinado fim Ao qual está, consequentemente, associado um determinado regime jurídico, além de uma determinada valoração social.

Imaginemos agora que se estabelece um contrato entre pessoas do mesmo sexo exactamente para o mesmo fim do contrato anterior, pelo menos de uma perspectiva jurídica. Teremos aqui ainda um casamento ou outra coisa qualquer. A discussão conceptual mantém-se e há-de resolver-se determinando se o elemento que muda no conceito original é ou não essencial. Se sim, estaremos perante um novo conceito, se não mantém-se o conceito e teremos apenas diferentes tipos do mesmo conceito.

Isto permite considerar uma hipótese A em que temos o actual casamento e um novo conceito, chamemos-lhe, por exemplo, homomónio. E uma hipótese B em que temos sempre o casamento, enquanto conceito, mas tempos o Tipo 1 - casamento entre pessoas do mesmo sexo e o Tipo 2 - casamento entre pessoas de sexo diferente.

Ora sendo esta discussão fascinante (it really is) não tem absolutamente (mas mesmo nada) que ver com o regime jurídico que se vai aplicar à hipótese A ou B. Mas mesmo, mesmo, mesmo nada. E isto porquê?

Porque o regime jurídico pode ser o mesmo para o casamento e para o homomónio, como pode ser o mesmo para o casamento entre pessoas do mesmo sexo e entre pessoas de sexo diferente. Excluídas as considerações de natureza do Direito, que impeçam que determinadas normas sejam consideradas Direito por estarem contra a Moral (e excluindo que neste caso haveria alguma moral violada), nada impede o legislador de atribuir os regimes jurídicos que quiser aos conceitos que quiser, inclusivamente atribuir o mesmo regime jurídico a dois conceitos diferentes. Por exemplo, a Associação e a Fundação, embora sejam dois conceitos jurídicos distintos partilham têm um regime comum e algumas normas que constituem um regime próprio.

Donde resulta que a diferença de nome, leia-se, a distinção entre conceitos, nada tem que ver com o regime jurídico aplicável.

regime jurídico aplicável tem que ver com a vontade política e com os requisitos de validades impostos pelo sistema.

Donde resulta que não querer chamar casamento ao conceito que descreve o contrato entre duas pessoas de sexo diferente mas estar disposto a aplicar-lhe o regime jurídico do casamento é, de uma perspectiva prática, a mesma coisa que lhe chamar casamento: uma vez que as pessoas não são reguladas por conceitos (explicam-se através deles, e que grande confusão anda para aí...) mas por normas.

Por outro lado mesmo que se lhe chame casamento nos dois casos, optando por distinguir em tipos nada obriga a que os dois tipos tenham o mesmo regime jurídico, por exemplo, uma sociedade comercial é um conceito, embora exista um regime jurídico para a sociedade comercial por quotas e a sociedade comercial anónima, enquanto tipos (pese embora, partilhem algumas regras comuns).

De tudo isto resulta que a discussão sobre o nome e o regime é, de um ponto de vista jurídico, uma palhaçada. A discussão, a existir, apenas poderá ter como arena o filosófico e o político.

Ou seja Manuela Ferreira Leite não quer o casamento de tipo 2 - entre pessoas de sexo diferente - mas o homomónio porque acha que o sexo dos contratantes é um elemento essencial do conceito. Mesmo que esteja disposta a aplicar regimes jurídicos semelhantes a ambos.

Tal, como se disse, pode justificar-se por razões filosóficas - distinção terminológica de dois conceitos distintos - e/ou políticas - urticária, Igreja e eleitorado de Direita.

Até breve.


* o título correcto é, correctamente "A cadeira sem costas nem braços (um post sobre o casamento entre homossexuais e sobre Manuela Ferreira Leite" mas não pude resistir.

2 comentários:

  1. essa questão da cadeira partida vêmo-la colocada de modo semelhante na Trilogia de Nova Iorque do Paul Auster, mas nesse caso o objecto é um guarda-chuva. tenho em mente postar esse excerto desde que criei o blog e é uma daquelas coisas que vão sendo eternamente adiadas.

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