quinta-feira, 8 de maio de 2008

Exercício de estilo - XXVIII

O lápis

Na sussurrante vastidão da africana picada, o carro de Lapin des Saints desfiava os kilómetros como um pano cru que se abre ao longo de um infinito fecho éclair. A estrada avançava pelo horizonte como um tempo que se dobra e, sobre o seu peso, descobre a invisibilidade. O carro de Lapin des Saints engasgava o diesel no carburador, dava voltas ao motor e lá mantinha os pneus a girar a uma velocidade garantidamente desconfortável, nem parados, tal era o calor. Ao cabo de horas a paisagem muda, luxuria-se, verdeja-se, embonita-se. A estrada torna-se o único sulco da terra, a terra desaparece comida pelas raízes, pelos troncos, pelos ramos, pelas folhas, pelos animais, pelas enormes árvores, que arvorejam. O carro de Lapin des Saints é o único que não parece dar por nada, come as milhas da estrada de mesmíssima maneira. As horas passam, a sede aperta, aperta a fome, o calor, pior parados, nem uma aragem. Nem viv'alma. Nem ninguém na picada, na savana, na selva, onde seja isto que se passa. E Lapin des Saints pára. Pára o carro, sai do carro, em dois passos apenas está na orla da estrada, à beira do pó, à beira de desaparecer na folhagem, na vegetação. Escuta, não sabe o quê, aquele até é território perigoso, dizem-lhe. Num repente um bando de crianças surgem do mato. Um sobressalto. Lapin des Saints está sozinho no meio de África, mais valia estar sozinho no mundo, tão grande é África. Sobressaltado mas sem temor, recompõe-se, observa, aguarda. As crianças avançam para ele em grande barulheira, não se percebe o tom. Uma das crianças toma a dianteira, toma a voz sobre a barulheira e Lapin dos Saints espera tudo. E a criança pede. A criança pede, por Deus e pelos arcanjos, se isto não é verdade, a criança pede um lápis. Um lápis em nome de Deus, um lápis, pede a criança.

Sem comentários:

Enviar um comentário