terça-feira, 20 de maio de 2008

Comentando Agostinho - I - Da escolha

Assim começam as Sete cartas a um jovem filósofo, magistralmente:

"Conhecemos tão pouco da vida, do mecanismo complexo que deve ser este do mundo que, segundo me parece, o decidir-se não tem grande valor, senão no que respeita à estima que poderemos manter por nós próprios, à confiança que talvez seja absurda, mas que em todo o caso nos permite o viver. Creio que, sejam quais forem as circunstâncias, tanto faz decidir-se atirando uma moeda ao ar; meditamos gravemente, pesamos todos os elementos, depois fazemos exactamente o que faria o homem que tendo visto apenas a milésima parte de um milímetro do dente de uma roda de engrenagem tivesse opiniões firmes sobre o género de papel ou de bolacha fabricada pela máquina que não a percebe no seu conjunto. Só por um extraordinário acaso se poderá acertar; temos todas as possibilidades, caro Amigo, de tomar sempre uma decisão errada; a sorte da moeda ainda deve talvez ser a melhor, porque, pelo menos, suprime do sistema, já complexo, um elemento que pode perturbar: o da nossa vontade."

Eis o parágrafo inaugural de um dos livros da minha vida. A sua releitura aumenta mais ainda a minha angústia pelo desaparecimento do meu exemplar, amplamente glosado às margens, com todo o tipo de comentários que ainda não dei por perdidos pois as buscas continuam.

Lembro-me que esses comentários andarão, no que toca a este parágrafo inicial, sobretudo em torno de um espanto por ver, logo ali, reflectida uma preocupação nevrálgica da minha vida de então: a escolha de um caminho de estudo e de investigação. A opção, como se percebe continuando a ler, é, no caso do destinatário de Agostinho da Silva, entre a filosofia ou outra coisa qualquer, a minha não andava muito longe. E para o adolescente que era aquelas palavras eram, antes de outra coisa qualquer, uma mão dada em auxílio, um traço de compreensão.

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