quinta-feira, 27 de março de 2008

O fim do divórcio litigioso

É preciso começar por explicar o que é isso do divórcio litigioso. O que implica começar pelo princípio: o casamento. No ordenamento jurídico português o casamento vem acompanhado de deveres jurídicos. Esta qualificação do dever como jurídico é relevante uma vez que o distingue de outros tipos de deveres, como os morais ou religiosos. Além disso é regra comum que um dever jurídico esteja acompanhado de um regime que regule a sua violação. Está muito bem: os deveres são para cumprir e se não forem cumpridos o Direito reage. Normalmente, com sanções, punindo. O caso pode não ser assim tão simples de compreender pois na terminologia jurídica também existe a obrigação que não é exactamente um dever mas anda lá perto. Mas enfim, deixemos isso para os juristas.

Associado ao contrato de casamento o legislador português previu cinco deveres: o dever de respeito, de assistência, de cooperação, de coabitação e de fidelidade. A violação de um destes deveres é a primeira das razões para um dos conjuges poder pedir o divórcio litigioso. Essa violação, porém, tem que ser culposa e grave ou reiterada, de tal modo que "comprometa a possibilidade de vida em comum", isto nos termos do artigo 1779º do Código Civil.

Além disso também é motivo de divórcio litigioso a separação de facto e a ausência. Tanto uma como outra (apesar da qualificação enganosa da separação de facto) são conceitos jurídicos, aliás, explicados pelo próprio Código. E na verdade nem precisavam de ser explicados porque o dever de coabitação já implica que não pode haver nem ausência nem separação de facto.

Do que ressalta do regime do divórcio litigioso é uma noção de culpa. Do que se vai à procura de um divórcio litigioso é de um culpado. Alguém tinha que cumprir determinados deveres e não cumpriu, logo é culpado e por isso deve ser punido com o epíteto de conjuge culpado e deve ser-lhe aplicada uma punição, normalmente o pagamento de uma soma em dinheiro, a perda da casa e da custódia dos filhos. Enfim, o trovão de Deus, neste caso do Direito, cai sobre ele.

Isto só não é uma hipocrisia pegada porque, como em qualquer outro contrato, uma pessoa sabe ao que vai. Ou pelo menos deve saber, pois tem a possibilidade de saber. É verdade que, ao contrário da maioria dos contratos em que há variadas cláusulas na disposição das partes os deveres conjugais não estão na disposição das partes. Por exemplo, não podem uma homem e uma mulher casar-se e afastar o dever de fidelidade (o que não significa que não possam estar-se nas tintas para ele, perdendo assim o direito de o invocar).

Mas, surge a questão, fará sentido haver esses deveres jurídicos? Ou para eles prescrever a punição do divórcio litigioso? Em tempos entendeu-se que sim - mais precisamente em 1966 e novamente em 1977 - e agora há quem continue a entender que sim. O BE e o PS entendem que não. Já o Senhor Vasco Pulido Valente não se percebe o que entende, nem isso é francamente relevante. Refiro-o aqui pois já tinha este texto a meio quando leio a sua coluna de hoje no Público. Pequeno parêntesis: devia haver um grau a partir do qual mesmo para efeitos estilísticos o ser inteligente não se poderia fazer de parvo. O Senhor Vasco Pulido Valente com este texto que cito ultrapassa este limite levando o leitor a pensar se será mesmo parvo ou simplesmente exagerou no estilo. Dele destaco o final, que o Senhor Vasco Pulido Valente pretende que seja a sua pedra de toque: segundo ele o fim do divórcio litigioso vem desproteger a mulher pois como esta tem em média menores rendimentos que o homem ficará desprotegida pela ausência de punição pelas suas violações conjugais.

Ponto 1. Este pensamento revela não um progressismo atento de quem sabe que a mulher recebe menos que o homem mas a premissa de que os conjuges estão num casamento à mama hipotética de uma compensação caso a coisa corra mal.

Ponto 2. O que é inacreditável é que no século XXI, laico o país de dois séculos, pelo menos na teoria, ainda estejamos a discutir culpas morais para aferir do pagamento de indemnizações e mais grave de deveres e direitos que nada têm que ver com a moral.

Fulano trai a mulher repetidamente. Esta descobre e pede o divórcio. Ganha. Fica com os filhos. Alguém me consegue explicar onde está o nexo de causalidade entre ser infiel e ser mau pai. Ou, simplesmente, entre ser infiel e ter que pagar dinheiro por isso, indemnizar a infidelidade.

O problema está em aceitar-se um casamento com deveres jurídicos que são depois usados para um regime de punição pura e dura. Ou seja, o direito incorporou uma moral, que está longe de ser uma moral consensual (como aliás nenhuma é).

Mas o Senhor Vasco Pulido Valente gesticula ainda com outro argumento: o de que o fim do divórcio litigioso transforma o casamento num contrato perpétuo num contrato temporário. Isto apesar de ter começado por dizer que já conta quatro casamento, isto é, provando o seu próprio argumento errado. Mesmo assim vale a pena demorarmo-nos um pouco mais nele.

O Direito trata, entre outras coisas, de regular a vida em sociedade, seja numa relação de grupo, desde grupos transnacionais, como os Estados do Direito Internacional, seja numa relação a dois como é, também, o contrato de casamento. Ao regular a vida em sociedade deve preocupar-se com a segurança e a justiça das situações e nada mais. Para o resto há a Moral, a Religião e o diabo. Até porque nos conceitos de segurança e, sobretudo, de Justiça já há bastante espaço para discussões religiosas e morais. Daí que se compreenda com dificuldade , pelo menos de um prisma totalmente secular, que um contrato, como é o casamento, tenho tantos e tão obscuros deveres.

Repare-se, não há conceito mais indeterminado do que o de um dever conjugal. A lei prevê os cinco deveres conjugais mas não os define. Isto implica uma construção conceptual por parte dos intérpretes, maxime, os juízes. O que significa que ninguém está a salvo de, num contexto profundamente íntimo, ver avaliado o seu comportamento por padrões morais alheios que são juridificados ipso facto pela intervenção da lei e do juiz.

Volto ao princípio para um contra-argumento: poder-se-ia dizer que só se casa quem quer. Aliás, já aqui escrevi um texto intitulado Só se divorcia quem se casa. E era bom que assim fosse. Mas há um problema. A ordem jurídica farta-se de atribuir privilégios aos casados que não atribui aos solteiros, mesmo que unidos de facto. É verdade que união de facto é hoje em muitas áreas equiparada ao casamento mas ainda não há uma total equiparação. Nem essa deve ser a questão. Se me quero casar, juridicamente falando, é porque quero constituir um laço jurídico com outra pessoa, um laço que se presume exista já num campo emocional e outros e que poderá também ser constituído religiosamente. Mas no que ao Direito diz respeito esse laço deve ser feito para proteger a família, uma vez que o Direito (e, novamente, o Direito) a valoriza pelas suas próprias razões jurídico-políticas e não religiosas ou outras. Fora dessas razões cada um deve haver-se com a sua consciência ou o seu Deus.

O Estado, por força do Direito, protege a família. E bem. Ela é uma realidade social que está na base de todas as comunidade humanas e deve por isso ser protegida. Mas não confundamos proteger com dominar. O Estado deve proteger a família, desde logo reconhecendo uma liberdade de cada família se constituir como pretender perante o Estado e não o contrário. Daí que o Estado deve regular o casamento e o divórcio como uma das formas de constituir uma família e em parte a dissolver, dando liberdade para que isso possa acontecer nos termos que os próprios decidam. E não o Estado ou apenas um dos conjuges.

Ao Estado e ao Direito deve caber proteger o casal enquanto ele exista e nos termos em que exista e seja parte integrante da comunidade mas não deve regular a forma como isso acontece a não ser pela negativa, isto é, impedindo o que possa ser contrário ao interesse público.

Nota: e já agora ler este artigo do DN.

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