segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Rua da Conceição

Tenho um casaco Girafa, confeccionado em Macau vai para mais de 30 anos. Era do meu avô paterno. Creio que é a única coisa que tenho do meu avô paterno. Por isso o meu casaco Girafa passa a maior parte do tempo no roupeiro, em conserva, num misto de preservação e de espera por uma utilização honrosa. Verdade seja dita é um casaco quente e impermeável, o que o recomenda para tempos de intempérie. Coisa rara pela temperada Lisboa mas que por vezes sucede. Há uns dias deu-se o caso e a oportunidade surgiu. Vesti o casaco Girafa. E perdi um dos três botões principais.

Voltei ao local, nada. Mas não desisti. Confio nos retroseiros e nos saberes arcanos. Liguei à minha mãe a pedir recomendações. Mandou-me com firmeza à Rua da Conceição.

Espero que as retrosarias nunca se extingam. Tenho razões puramente egoístas para tal desejo. Um dia quero ter perante mim, meu filho ou minha filha, perguntando-me por um bom local para achar um botão. Mandá-los-ei à Rua da Conceição. E espero conseguir reproduzir o mesmo tom utilizado pela minha mãe. Um tom seguro sem ser impositivo. Conhecedor sem ser pedante.

Quem já foi às retrosarias da rua da Conceição talvez perceba o fascínio do tema. Eis uma rua que, no sentido Sé - Chiado, tem o seu lado esquerdo repleto de pequenas e antigas retrosarias. Porta sim, porta não, uma retrosaria, exibindo, aparentemente, os mesmos produtos que a anterior, descerra as suas portas ao cliente mais exigente. No meu caso, procurando, um botão com mais de 30 anos, estava no lugar certo.

Apesar de não ter encontrado um botão idêntico - "esses são de confecção, não se arranjam" disse-me um retroseiro - encontrei alguns parecidos e outros muito parecidos. Em meia hora havia comprado meia dúzia de botões, duas fiadas de três, para escolher depois quais substituiriam os originais.

O deslumbramento provocado pelas retrosarias da rua da Conceição, esse, como tantas coisas mágicas de Lisboa, vai acompanhar-me durante muito tempo.

Há um lado mitológico em toda esta história que me surgiu na mente quando andava de porta em porta nas retrosarias da rua da Conceição:

no mito do primeiro Diónisos - Zagreus - este, ainda menino, é aliciado com brinquedos pelos Titãs, que depois o despedaçam e desmembram, salvando-se apenas o coração, preservado por Atena, a partir do qual Zeus, cria o segundo Diónisos.
Os brinquedos dados pelos Titãs ao jovem Zagreus adquirem neste mito um significado ritual, simbólico e oculto, próprio de um verdadeiro misticismo. Ao longo dos séculos procurou compreender-se a ligação entre esses brinquedos e o mito do primeiro Diónisos, o Zagreus que deveria suceder a Zeus, se pudesse ter crescido o suficiente. A este respeito os textos de Kérenyi são magníficos.

3 comentários:

  1. É oficial: estás de volta.

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  2. essa rua, pela tua descrição, só pode ser fascinante. além do mais, tem o nome da minha mãe, que também sabe encaminhar-me quando em apuros.

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