terça-feira, 28 de agosto de 2007

What's in a name?

faz Shakespeare perguntar Julieta a Romeu. Creio que estou a tentar responder a essa questão desde que me conheço. Brincando poderia dizer que me conheci a tentar responder a essa pergunta. Mas não estaria a brincar. E o que vou conhecendo de mim vem dessa vontade de chegar à fronteira do nome.

O nome é ele mesmo uma fronteira. Mais ou menos invisível, o nome é simultaneamente de uma intimidade profunda e muitas vezes inconsciente; e de uma publicidade atroz. Então, o que vai num nome?

Não há área da existência humana onde a influência do nome não se faça notar. A religião deu-lhe um valor metafísico - não invocarás o nome do Senhor em vão, comes to mind - com as suas Sagradas Trindades, em que três nomes distintos se referem a uma única entidade indivisível, na união do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O mesmo se diga do sagrado nome de Allah. As tradições esotéricas muito para isso contribuíram, dando à palavra, e logo ao nome, cimeiro entre as palavras, um poder misterioso e obscuro.

Mas mesmo no mundo por baixo dos céus o nome não deixou de ter importância e de exercer fascínio ao longo dos tempos. Foi fácil para mim ir fazendo amigos, ao passar dos anos, entre aqueles que descobria andarem às voltas com o Nome. Wittgenstein ou Kripke são os que mais visito e releio. O biógrafo do génio austríaco diz mesmo que o problema filosófico do nome próprio era um dos favoritos de Wittgenstein, nos seus loucos seminários em Cambridge. E Kripke prosseguiu, em parte, esse caminho.

Mas não é só de preocupação lógica e científica que vive o nome. O poder do nome chegou ao Direito de uma forma que não deixa de impressionar os mais atentos. Se fosse jurista tenho a certeza que adoraria estudar esse paradoxo que é a protecção fundamental do direito ao nome e à identidade pessoal e a protecção do pseudónimo.

Eis uma expressão importante quando falamos do nome: identidade pessoal. Gosto de perguntar àqueles com quem vou discutindo a vida se para eles o corpo é eu ou meu. Creio bem que a mesma pergunta se pode fazer do nome: o nome é eu ou meu? Não penso que a distinção seja assim tão supérflua.

É verdade que para uma esmagadora maioria de pessoas o nome é o centro de uma relação íntima e de uma relação com o mundo, uma ponte mesmo, em muitos casos. Temos um nome que somos nós. E metemos tudo lá dentro. E nada há de meu para além do nome. Nestes casos o nome confunde-se com a existência.

E, no entanto, tantas as excepções e tanto que nos podem elas fazer pensar. Só em Portugal uma colecção infindável. Escolho dois, por razões diferentes. Pela oportunidade escolho Adolfo Correia da Rocha, esse nome maior das letras portuguesas, de que a 12 de Agosto se celebrou o centenário. Porém, minto: Adolfo Correia da Rocha não é um nome maior das letras portuguesas. Na verdade é um nome inexistente. O nome é outro, Miguel Torga. Voltando a Shakespeare: o que está num nome?/aquele a quem chamamos Torga/Com qualquer outro nome escreveria tão bem.

E a que se deve isto? A que se devem os Torgas e os Gedeões? Não poderão ser todos opções estéticas, não gostar do próprio nome? E o que é o próprio nome? Um registo num Arquivo de Identificação? E, de repente, estamos em Saramago com Todo os (seus) nomes.

A resposta de Shakespeare parece apontar para a irrelevância do nome, numa peça em que os nomes são o mais importante. Nomes que começaram, no princípio dos tempos, por ser utilitários. Porém, nada é apenas utilitário por muito tempo. O mundo e o ser humano têm uma capacidade ilimitada para a arte e para a transcendência. Se os nomes começaram úteis, como alcunhas, marcas de corpo e de terras, há muito que perderam esse carácter. Os nomes marcam-nos. Voltando ao seu carácter delimitador: o nosso nome é o que menos temos de nós. Por cada pessoa que o ouça perdemos um pouco mais do nosso nome em favor ou prejuízo do que lá puserem dentro.

Nomeiam-nos e existimos? Se deixarmos. Não. Estou bem em crer que não. Nomeiam-nos e cria-se um espectro de imagens, as de cada qual a tentarem coincidir com as demais. E o nome sempre o mesmo, como se nada fosse.

Segundo exemplo: não tenhamos medo de ser pessoas. É quase uma psicose colectiva. Compreende-se o peso: como dar por exemplo Fernando Pessoa, talvez o maior génio literário já produzido por Portugal, sem se parecer arrogante, presunçoso? Ensaiemos: acredita-se que Pessoa conseguisse todos aqueles heterónimos à custa de uma espantosa disciplina formal? Parece que há quem acredite que sim. Prefiro a tese psiquiátrica: não é mais natural que aquela divisão lhe fizesse sentido, lhe fosse ínsita? que o nome Fernando Pessoa lhe pecasse por defeito? que não conseguisse, por não conseguir, meter tudo o que lhe ia pelo corpo e pela metafísica dentro do nome Fernando Pessoa? E se quisesse revoltar-se contra a opressão do nome? Meus deuses como nome pode oprimir!

E não estou a falar-vos de expurgar as idiossincrasias e as contradições para criar nomes com personalidades lineares e estáveis. Estou a falar-vos de um corpo, várias vivências. Para quando a revolução nominal, sucessora da revolução sexual? Se um homem pode ser mulher e uma mulher passar a ser homem, por que não pode o Pedro ser também Joaquim? Se se muda o sexo do corpo, não pode deixar-se o género em paz e mudar a personalidade? Multiplica-la. Diz que lhe chamam perturbação psicótica. Estou a ver. Lembo Arno Gruen e a sua Loucura da Normalidade. Se o ortónimo é o normal de todos os dias, não posso deixar o Asdrubal para o chefe, para os gajos do café e para os chatos do costume e ser Otílio nas horas vagas, horas minhas, a quem eu queira? E se for muitas coisas? E se elas me perseguirem, me atacarem? E se eu não gostar do que meteram no meu nome? E se me tiverem levado nome e o meu nome me continuarem a dar?

Eu gostava de ser genuíno, de conseguir reconduzir todos os afluentes a um mar comum. Mas quem nasceu para ser rios demora a chegar ao mar.

O nome simplifica, dir-se-á. É verdade, mas por Zeus, que fascínio é esse com a simplicidade? Ninguém sabe, ninguém quer saber, é mais simples.

Eu gosto de nomes, fascinam-me. Fascinam-me as palavras, tanto quanto as odeio, e os nomes próprios, maiores entre as palavras, são os que mais me fascinam. Um nome pode salvar-nos. Pode impedir-nos de nos perdermos, de nos afundarmos. Um nome pode matar-nos.

Um nome. Por um instante, umas horas, uma temporada, uma vida, pode ser tudo o que precisamos para descansar. Pode ser um quarto de hotel numa cidade distante. Pode ser uma conversa para nunca mais. Pode ser um fim de tarde às terças e quintas, pelas 7 horas, junto ao rio.

Um nome. É preciso ponderar se, como qualquer produto da razão, ferramenta ou jogo, não será para além disso apenas arte. E de tudo isto se pode falar, bem sei. O nome começa onde principiamos a pensar, a reduzir, organizar. E percebemos, então, que do nome podemos dizer aquilo que Kerényi diz da mitologia e da sua capacidade para explicar os muitos nomes de Diónisos:

que nos traz até à entrada daquilo que constitui o conteúdo dos Mistérios e de que não se poderia falar - aliás, quando verdadeiramente experimentado, não pode ser dito.

Quis sempre crer, e continuo a crer, que usamos hoje o nome tanto por desconfiança quanto por utilidade. Daí que seja das primeiras coisas que os amantes despem. Um nome só é bom para ser destruído. E logo se construa outro.

Silesius dizia que a rosa é sem porquê. Shakespeare responderia dizendo que a rosa, mesmo com outro nome teria o mesmo perfume. Apetece-me dizer que a rosa, sem nome nem porquê, resta pelo que é, e isso mesmo nos resta.

5 comentários:

  1. A malta fica à tua espera. Boa reflexão.

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  2. Sabias que Herberto Helder se chamava Herberto Élder? E isso de adicionar uma aspiracao - espirito rude- a uma palavra?

    E porque é que tu ficas junto ao rio, as tercas e quintas e eu tenho de subir o rio, permanentemente, contra o sol?

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  3. :) ainda bem que percorremos caminhos diferentes. E o teu não me parece assim tão mau: subir o rio e ter o sol de frente é muito franco. É honesto e límpido, de certa maneira.

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  4. Mesmo assim acho injusto.

    Tu ves a outra margem e eu não.

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  5. Oh...há muito tempo para a outra margem.... :)

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