sexta-feira, 30 de julho de 2004

Flirt



Tenho sobre o flirt a mais particular visão. Em boa verdade não conheço uma só pessoa que concorde com o que vou expor em seguida.



Gosto do flirt. Consigo já imaginar as expressões e os sorrisos, as presunções, as suposições, as assunções. Mas não. Não gosto do flirt pela sedução barata, pelo prazer da conquista. Gosto de flirt pelo perigo. E eis que toda uma teia complexa se desvela.



Gosto do flirt pelo perigo. Analisemos a frase.



Qual é o perigo? O perigo é sempre só um. O amor. O perigo é viver ardentemente. E, qual combustível, arder. Mas haverá outro modo? Não, não há. Logo, o perigo é incontornável, atraente.



Relembremos mais uma vez o meu mestre Meng-Tseu:



Não gosto da morte. Mas há coisas de que gosto menos do que da morte. Haverá, pois, momentos em que não evitarei o perigo

O flirt é uma forma de viver no fio da navalha. É uma forma criativa de se viver. Nada tem que ver com amor, nada tem que ver com sentimentos. Confusos? Contraditório, eu? Calma, sou só um paradoxo.

Explico. Flirtar é entregarmo-nos a um interesse. A um interesse que descobrimos ter despertados em nós e cuja origem é desde logo, irrelevante, pese embora, interessante. Interessante o suficiente para nos fazer prosseguir o interesse, cativando o interesse daquele que nos atraiu. Repito isto nada tem que ver com amor. Ou sexo. Tem que ver com atracção, atracção pelo Outro. Por querer possuir a alma dos outros. O que os amedronta, que é simultaneamente, o que guardam como mais precioso. Por querermos, tão simplesmente, tão desesperadamente, chegar a outra humanidade que não a nossa. Que não a nossa por vezes tão amortalhada, tão duvidada, tão ignorada, tão incerta. E aí, como um supremo abandono, mas com a nossa última humanidade, partindo, emigrada, fugitiva, exilada, flirtamo-nos ao outro, como um arremesso, para um abraço.

É viver no fio da navalha, de forma criativa, porque do flirt tudo pode nascer. Desde a mais continuada esterilidade até à mais arrebatadora eternidade. Passando por vários serões bem passados ou uma simples viagem de metro. O flirt é um crescendo combinados de sensações, de referências, de intenções. E aqui começa o ponto em que me afasto dos demais.

Não se flirta porque se quer. Não se flirta porque se está apaixonado. Nem sequer se flirta porque se deseja. Embora tudo isso possa vir a acontecer. Eis o perigo. Eis o doce perigo. Mas eis também a razão porque vale a pena estar vivo. Para nos provarmos a todo o momento que aquilo que permanece nas nossas vidas permanece contra tudo e contra todos e não porque é poupado, escondido, protegido, enganado, impedido qual mito platónico, de ver a luz, agrilhoado numa caverna.

Flirta-se porque não se sabe. Flirta-se porque não se consegue não flirtar. Flirta-se para ver nos conseguimos escapar. Flirta-se porque queremos mostrar a nós mesmo o que é nós é forte, merecedor. Flirta-se como que em busca de um fogo purificador que queima o acessório e bronzeia o essencial. Flirta-se em busca de nós, no Outro. E mesmo que sempre, sempre, sempre, ao fim do dia, ao fim da canção, ao fim do pensamento, se regresse a nós, sempre alguma coisa terá ardido, terá ardido muito.

E se um dia flirtarmos e não voltarmos, se um dia formos e não voltarmos era porque não era para voltar, era porque era para ficar. Era porque aquele fogo que era para nos queimar, era afinal o nosso fogo também. E, assim, sempre.

Assim, o flirt pode ser um constante confirmar dos sentimentos verdadeiros, da sua força, da sua dimensão. Um constante desafio lançado às histórias que contamos a nós mesmo e com que pretendemos convencer-nos de um caminho, um modo, uma moral.

Não é que o flirt não possa ser o começo de um amor ou mesmo de um engano, de uma traição. Mas isso é já um pensamento preconceituoso, cínico, azedo. Flirtar pode ser isso, como pode ser aquilo. Mas é sempre revigorante e determinante.

Aqueles que desprezam ou criticam o flirt revelam um moral assente no culto da segurança, do medo, do controlo. Tudo o que a vida não. Ela é incerta, insegura, descontrolada. E flirtar é o que de mais humano podemos ser no meio dessa luxuriante natureza. É uma forma de usar a cultura, a inteligência, o humor para nos lançarmos a outra pessoa, seja por uns minutos, seja por uma vida. Flirtar é ser aventureiro, é não temer.

Se se sentir, flirtar é principiar a ser mais. Ser fora de si mesmo. É lembrar a vida. Que estamos vivos. O que ainda em nós pulsa, o que se sobressalta, o que amaina. O que se conserva, o que passa.



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