quinta-feira, 6 de maio de 2004

O Passado do Outro



Os anos vão levando a inocência e desenhando as cicatrizes. Aos poucos - às vezes nunca - vamos aprendendo a percorrer o nosso passado. Primeiro apenas com os olhos, sobre o ombro. Depois, voltamo-nos, arriscamos passos, meios trôpegos. Enfim, com algum acaso, alguma sorte, descobrimos como encarar o reflexo, as imagens guardadas, os caminhos escolhidos, as decisões tomadas. Alguns de nós deixam tudo cá dentro, como emoções que se bebam como vinho. Outros, empacotam o passado, como pares de meis de nylon, pespegadas, um diário de vida em objectos. Há os que escrevem, os que pintam, os que vão em busca dos rostos, dos corpos, dos lugares. Os que se centram, num ponto, discorrendo a razão, sobre emoções arrumadinhas. Mas tudo isto passa e se aprende ou se aceita. Ou suporta.



Depois, há o passado do Outro.



O passado do Outro é um mito, uma fábula, uma fantasia, uma ficção. E é, paradoxalmente, a mais árdua realidade, a mais completa virtude que o Outro carrega e possui.

O passado do outro exige. Exige uma permanente atenção, um rito. É um desafio lançado ao nosso temperamento, o passado do outro. Surge com ele, invisível, silente e vai revelando-se nas suas palavras, nos seus modos, nos seus contornos, nos seus hábitos. Enfim, no modo como o outro, que amamos, lida com o seu passado. Para além de tudo isto resta a nossa imaginação que completa tanto mais o passado do outro, quanto esse passado é susceptível de ser integrado, por incerto, pelos braços do devaneio. Busca-se uma moral, desenha-se uma fantasia, toda uma alternativa ao real nos surge como possível. Num repente o passado do outro parece ser um peso, um monstro, um rival. Um medo.



O passado do outro é o desafio maior do Eu. Aceitar o percurso, aceitar que outros existiram antes de nós. Aceitar que não somos todo o tempo do outro que amamos, que antes o partilhamos com ele, como outros o partilharam. O passado do outro desafia-nos a sermos humildes mas ambiciosos. Insta-nos a que olhemos para a pessoa e não para nós. Mas que desejemos esse nós como o futuro.



Se amamos pretendemos a especialidade, a particularidade. Pretendemos construir algo. Algo novo. Começar.



E eis que o Outro nos insinua um passado. Um Outro de Outros, onde outros quotidianos um dia se passaram, onde outros afectos se aconchegaram. E então temos de enfrentar o Outro, com o seu passado, como uma vida inteira, um mundo inteiro, temos de aprender, sobre o nosso próprio passado, a olhar o passado de quem amamos.



Esse passado trouxe-nos o Outro até ao nosso abraço. É ele que explica o beijo pelas horas dos dias, o poder andar de pijama aos Sábados de manhã pela companhia nua do Outro. E ele explica também certas fraquezas, certos medos, certos traumas. Certos. Incisivos. Irropendo do Outro. Do seu passado. Que temos de abraçar. Ou deixar.



O passado do Outro o que é? É o Outro, lá atrás, movendo-se, lastro, puxando-se, coração, impelindo-se, vontade. O Passado do Outro é o nosso maior desafio pois é tudo aquilo que não partilhámos e não podemos nunca partilhar. Não ensaiemos hipocrisias: nunca iremos compreendê-lo. Nem ele mesmo talvez o faça.



Ao passado do outro, creio, há que deixar um quarto vago. O passado do outro é um animal imprevisível. Exige respeito, mas sem se ceda o passo e a direcção. O passado do outro partilha connosco o caminho.



Apenas podemos aspirar a que um dia sejamos, nós também, uma boa parte desse passado.





No entretanto, entre tanto presente, podemos permitir-nos sorrir ao passado do Outro com a suprema ousadia de quem partilha com ele o mais belo dos tempos, aquele que é sempre infinito. O futuro do Outro é onde tudo se é.

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