quinta-feira, 6 de maio de 2004

O ideal era não haver ideais



para ti...agora que já tenho a minha biblioteca de volta...



A discussão idealismo/realismo é simultaneamente fascinante e entediante.



Comecemos pelo fim. Entediante porque inegavelmente filosófica. E a filosofia, nos dias que correm, sempre surge associada ao tédio. O que, confesso, não deixa de me fazer sorrir quando penso na Noia de Moravia.

Este tédio é explicado por razões impossíveis de aqui desenvolver mas que importa enunciar.



Realismo e Idealismo, como qualquer problema filosófico, só valem uma discussão entre pessoas integradas numa sociedade culta. O que é dizer entre pessoas cultas. Esta discussão situar-se-á, necessariamente, sobre um conhecimento diverso do mundo, em que a discussão servirá como explicação da natureza desse mesmo mundo. Ou seja, num movimento de devolução, depois de viajarmos o mundo buscamos compreender um seu problema essencial: é ele real ou criado por nós.



Esta discussão é despojada de qualquer interesse ou aplicação práticas se os sujeitos que a exercitam não dispuserem de meios e, sobretudo, vontade, para actuar em consequência das conclusões a que cheguem. Isto significa que a maioria de nós é, à vez, um idealista ou realista, alienado, inconsciente. Intuitivo, na medida da sua natureza.



Matar o idealismo foi a tentativa de muitos filósofos, sobretudo depois de neoidealismo kantiano e hegeliano da modernidade. Mas filósofos à parte quem não terá algo a dizer sobre se o mundo em que viajamos é uma construção do eu ou algo de absoluto em si mesmo.



Além do paradoxo de um ideal de não haver ideias mora por isso o desejo de uma certeza, cujo paradoxo, felizmente mata, para que possamos continuar a viver em desassossego. E essa certeza é a certeza do mundo. E esse desejo é o desejo das pessoas atormentadas pelo seu próprio espíríto, das pessoas que se temem, que temem o Mal em si, a capacidade de poderem criar um mundo que as atormenta. Que atormente.



Enfim, a possibilidade de criarem um mundo em vez de ele existir em si mesmo. Este medo de se ser demiurgo criador preferindo-se ser criatura é, caso interessante, quase sempre apanágio de almas que combinam a profunda inteligência matemática a um sentimentalismo angustiaste, quase sempre ocultado. Penso em Herbart, para começar. Mas depois pergunto-me pelos existencialistas, todos eles, realistas em potência. Ou melhor dizendo ferozes demolidores do idealismo. Mesmo quando não o pretenderam directamente. E sorrio.



O ideal é não haver ideias trai o verdadeiro desejo e natureza de quem o pronuncia. É um idealista que fala, um criador e não uma criatura. Alguém que pretende mergulhar no mundo, em busca dele, sendo que ele, pode muito bem ser a construção possível do Eu, reflexo transbordante de um infinito mundo interior. Mas este idealista é modesto, duvida, por vezes titubeia. E, por isso, refugia-se numa modéstia que é um grito de desespero, um pedido de libertação de si mesmo, uma vontade de protecção contra si mesmo. E do que seria capaz.



O ideal era não haver ideais para que não aspirássemos a algo novo. Antes o novo fosse descoberta do mundo e não invenção do mundo. Nos tornássemos hedonistas - não necessariamente - e empíricos. Usássemos a nossa capacidade criativa para, à maneira de Herbart, dirigirmos para o Absoluto das Coisas características que achássemos interessantes e próprias delas. Mas sempre com o aviso de que tais características não eram as coisas elas-mesmas. E, assim, desresponsabilizados, poderíamos, afinal, gozar de uma outra criatividade - que não posso deixar de sentir um pouco artificial ou, pelo menos, insatisfatória - a criatividade de vestirmos a realidade à nossa medida, isto é, de a designarmos nos limites do nosso intelecto.



O ideal é não haver ideias, sendo em si mesmo um ideal, denota então esta traição. A de querermos afinal libertar a criação, sem o peso de a assumirmos. Mas se o substituirmos por: o que é real é não haver ideais então tornamos o mundo uma imensa voragem angustiante à maneira existencialista ou um análise lúcida e incisiva à maneira de Wittgenstein. O que não permitirá é determinar a essência das coisas, o que nem mesmo o idealista Kant ousou fazer.



Talvez o ideal seja haver ideias. Desejos e crença no mundo como o mundo que pensamos nosso. Sentimos nosso.



Assumindo, assim, o demiurgo que somos, não com superioridade ou arrogância de quem inventa um mundo seu para o oferecer (dir-se-ia forçar) aos outros, mas com a fraternidade e o incentivo de que outros o inventem também de um modo partilhável e ainda assim sempre único.



Na certeza de que real em si mesmo só o Eu que crê e cria.

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