segunda-feira, 10 de maio de 2004

No topo de uma das colinas para falar ao ancião



Caro Velhote,



escrevo-te à janela do fim da tarde de Lisboa. Está um céu movimentado e como tal a luz do sol mostra-se inconstante. Volto-me para trás, abro as portadas da minha varanda e com o portátil sobre o colo olho para o Cristo-Rei, com a cidade e o rio entre nós. Será a ele que me dirigirei para me fazer ouvido por ti.



Desejo escrever-te há muito. As razões são tantas que as fui coleccionando e reconduzindo a categorias mais simples. Fiquei assim com a bondade da tua escrita como primeiro ímpeto, com a suave e refinada cultura depois e o profundo humor dos teus intentos depois.



A tudo isto se some que é muito mais simples, como é sabido, falar com estranhos. E tu, meu caro velhote és o mais fascinante dos estranhos. Partilhamos o rio, partilhamos uma escrita quase diária, partilharemos gostos, como certas músicas ou locais. Mas somos estranhos? Teremos talvez a estranheza da figura e do corpo, que estranharemos por não conhecer. E pouco mais.



Determino o dia de hoje para te escrever por leitura recente dos teus últimos posts. E assim conhecimento do teu novo template. Parece-me que muito te tem ele inspirado: tenho apreciado mais os teus escritos.



Escrevo-te assim, hoje, para te falar dos limites que existem há alma. Que existam na alma. Coisas tão distintas. E que me foram relembradas por um teu último post.



Escrevo-te com a brisa do fim da tarde, ao som quente de Bari, trazido pelos Ojos de Brujo. Parece-me apropriado.



O que te quero dizer, pôr à consideração do teu silêncio, é estar longe de perceber como se há-de amansar o medo do tempo que corre.



Estou cada vez mais longe de o perceber, parece-me, pois cada vez que confirmo não conhecer a alma outro limite que o seu corpo (sendo certo que uma alma determinada determina um corpo) concluo também que há tantos limites que alma toma para si sem que aí se encontrem. E suponho que, afinal, este é o único problema da existência. O peso da alma, talvez lhe queiram chamar assim relembrando um filme recente. O seu significado.



Escrevo-te pois pergunto-me-te se a alma não se matará a si mesma ao impedir o corpo. Se não terá a alma remorsos daquilo que impede o corpo de fazer, não porque o corpo não o queira - o corpo não tem querer - ou possa mas porque quer dar ao corpo aquilo que ele não tem: uma moral. Seremos os nossos próprios inimigos? Somos sempre.



Tenho conhecido ao longo das subidas e das descidas dos anos corpos quebrados pela alma e corpos tonificados pela alma mas nunca compreendi a questão prévia: de onde vem esta alma atormentada, que pode mesmo sofrer-se a si mesma?



O corpo deixa pois de fazer sentido e faz todo o sentido, passe o paradoxo. O corpo é a medida da alma se a tortura com impossibilidades mas é também nada nas mãos da alma se esta sonha as impossibilidades quimeras.



Olho de novo a outra margem, o Cristo Rei e pergunto-me que pensarás sobre tudo isto...



Poderá ser insaciável a voracidade de ternura segurança da alma? E assim infinito o seu medo?



Em boa fé te digo, velhote, em deslumbre caminho todos os dias pela Criação, procurando a mais genuína forma de a ela me juntar. Mas nada me atormenta mais do que intuir uma alma destruída pelos seus próprios amores desejos esfomeados.







Um abraço sincero,



puto paradoxo



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