segunda-feira, 10 de maio de 2004

Da permanência das coisas



Considerar que tudo muda, que a vida é eterna mudança é o mais suave cliché e pouco nos diz da natureza humana. Com efeito a mudança é sempre um conceito relativo. Relativo a algo que sirva de termo de aferição. O passado, genericamente tomado, é o local onde vamos para perceber a mudança com que decidimos lembrar e brindar a nossa vida.



As reacções a esta mudança inelutável e irredutível são as mais díspares. Dos control freaks que com ela desesperam aos change freaks que com ela se deliciam, há todo um receituário de mezinhas, ementas, ritos para nos adaptarmos à mudança. E, antes de mais, para termos a possibilidade de a compreender.



Compreender a mudança, o que significa superar o suave cliché, é a mais difícil das tarefas. Muita da resistência humana se deve à ignorância da natureza e nome das mudanças. Passe o paradoxo: vemo-las mas não as vemos. Igualmente, muita da atracção pela mudança se deve à mesma razão.



E nada nos confronta mais com a mudança que aquilo que permanece. Resistente à mudança. Ou sabendo manter-se genuíno e próprio no meio dela.



São as coisas mais simples que tomam estas características. As coisas que se repetem nas nossas vidas e que imediatamente nos projectam no tempo para o ponto anterior em que as tinhamos vivido. Poderá ser uma cidade, a que regressamos. Poderá ser um banda, que de novo vemos e ouvimos. Pode ser, enfim, uma infinidade de pequenas coisas, teimosas, que servem de potente anfetamina da memória (as mais comuns são as fotografias mas de fraca intensidade), que nos apresentam, fatalmente, uma instântanea sobrevisão desse momento passado e deste momento presente, com a tal coisa em comum. A coisa que permanece. A mudança surge então, nítida, quando sobrepomos o objecto que se repete. E nada mais se sobrepõe. Ou algumas coisas se sobrepõem também. Ou tudo se sobrepõe.



Assim se afere a mudança, pela impermanência das coisas à chegada daquelas outras que teimam em voltar.



Ou que teimamos que fiquem. Para que possam saudar, connosco, a impermanência, por vezes dilacerante, por vezes deliciosa, do mundo.

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