terça-feira, 20 de abril de 2004

Conto de Inverno - Cinemateca, 21h30



O Conto de Inverno, um dos que ainda não tinha visto na pentalogia Contos das Quatro Estações e o único que não conheceu estreia comercial em Portugal, passou hoje na Cinemateca Portuguesa.



O meu primeiro contacto com o filme aconteceu, ainda antes de entrar na sala de cinema ao começar a ler a folha disponibilizada pela Cinemateca, folhas essas que colecciono escrupulosamente.



Escreve António Rodrigues, que desconheço quem seja mas que perceberá, por certo, muito mais de cinema do que eu, que este é o filme onde Rohmer "parece ter posto entre parentêsis o seu 'gosto pela beleza', no sentido mais literal e no sentido mais abstracto". Alicerça esta ideia, com que, aliás, conclui o texto, numa diagnosticada opção de Rohmer pelo prosaico em detrimento do ideal, nas intervenções da filha da personagem principal como marcas de incerteza.



O que António Rodrigues parece querer dizer é que na obra de Rohmer e nos Contos das Quatro Estações muito em particular, Conto de Inverno surge como uma excepção ao racionalismo idealista da sua obra, um racionalismo sempre atento aos pormenores, aos detalhes, ao apuro da estética (que surge aqui comprometida a uma ideia de racionalismo ideal). Daí António Rodrigues entender que este é um filme menor na obra de Rohmer, pelo que me parece.



O Conto de Inverno surge-me como uma história de fé e de racionalidade imbricada numa teia de relações humanas, amorosas, indefiníveis, quotidianas.



Ao contrário de António Rodrigues não me parece que Rohmer faça qualquer transigência ou concessão através da personagem de Félicie. Pelo contrário, acho que a usa para introduzir na sua obra uma marca de fé no meio do habitual mundo ideal, da literatura, da filosofia, do teatro. E, pelo teatro devemos começar. A winter's tale de Shakespeare, como A.R. bem refere, é a peça que inspirou Rohmer a criar a série dos Contos das Quatros das Estações e a realizar este filme muito em particular. Ora a winter's tale, e por aí deveria ter ido um pouco mais A.R., é uma peça sobre o ciclo da vida e da morte, do renascimento. Entretecido de pecado, loucura mas também de amor e sacramento.



Disso mesmo nos dá conta Rohmer na sua winter's tale, em que Félicie destoa de todos os que o rodeiam, sobretudo de Loïc, por caricaturalmente encarnar aquela que não sendo intelectual nem o querendo ser, possui um saber intuitivo. Reminiscente.



Da teoria platónica da reminiscência e da metempsicose está este filme perpassado, sendo aliás o que leva o intelectual arquétipo, Loïc, a dizer a Félicie, que para alguém que acha que não sabe falar francês ela diz por vezes coisas espantosas. Com efeito, Félicie, a quem os livros chateiam, compreende intuitivamente as mais complexas teorias filosóficas sobre a reencarnação e explica mesmo a outros personagens a sua própria visão da reminiscência platónica.



Félicie encarna a fé ideal e não a razão ideal que é comum nas obras de Rohmer. Essa fé ideal pode ser prosaica, e sê-lo-á por certo, pois toda a verdadeira fé é prosaica, por estar ao alcance de todos. É esse o contraponto que Rohmer faz, aqui, no Conto de Inverno, com toda a sua obra.



A querermos ser ainda mais místicos poderíamos assim concluir que Rohmer se coloca do lado da fé, revelando-se um crente, ou pelo menos um interessado, pois é a fé inabalável de Félicie no reencontro do seu único amor (aquele que a fé revela) que acaba por conduzir ao desenlace do filme, inequívoco e feliz.



E assim, queremos crer, Rohmer não pôs entre parentesis o seu "gosto pela beleza" mas antes o demonstrou de uma outra maneira: a fé pode ser o que de mais belo há.



E o mais redentor. Não obstante as tentações, as dúvidas e as premonições para além da razão.

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