terça-feira, 23 de março de 2004

Da honestidade



Antes de mais, deixem-me que vos diga que se são honestos sabê-lo-ão. A principal característica da honestidade é a sua compulsividade. A sua íntima e compulsiva evidência. Antes de mais para o próprio. A honestidade genuína é uma emergência incontrolável, que pode demorar mais ou menos tempo a eclodir mas que uma vez chegada ao seu momento de erupção nada pode deter. A honestidade é algo de catártico e obsessivo embora vise permitir exactamente o contrário. O mesmo se passa com aqueles que convivem com a desonestidade: em si, a desonestidade, visa manter um status quo sereno e permitir objectivos, levando, no entanto, em muitos casos, a remorsos obsessivos e pulsões de fatalismo catártico. Passe estes paradoxos a honestidade é inconfundível. A pessoa honesta vive a honestidade com a mesma crueza e crueldade que o desonesto vive a desonestidade. Aliás, ao contrário do que pode pensar-se, as técnicas podem nem ser muito diferentes. Por exemplo, é um mito pensar-se que o honesto nunca mente. Pelo contrário, mente, e pode até mentir muito, justamente para se manter honesto. E não comecem já a abanar as cabeças, dizendo "ora aqui está o relativismo pós-moderno, afinal é tudo a mesma coisa, blá, blá, blá". A verdade é que as mentiras perpetradas pelo ser honesto são ainda uma extensão da sua obssessiva mania de perseguir até ao fim a sua honestidade. O honesto inventou a mentira branca. Aquelas mentiras que visam permitir o escrupuloso cumprimento de um bom propósito. E isso, como qualquer honesto poderá confirmar, é a praga última da honestidade.



Na verdade a honestidade pode ser, e o mais das vezes é mesmo, uma praga. Perguntem a qualquer honesto. Quanto mais honesto melhor. Trata-se de uma sensação de simultâneo regozijo mórbido e profunda angústia quando o honesto começa a sentir o formigueiro moral e verbal na sua mente. Depois começa a experimentar uma vontade de telefonar, de escrever, de encontrar a pessoa, as pessoas, a quem revele a verdade, a quem conte tudo. A cada momento o ser honesto quer identificar o presente com a verdade. O ser honesto vive sob a pressão de ser continuamente genuíno. É isso que significa a honestidade. Daí se explica o brocardo "venha a verdade doa a quem doer" ou "a verdade vem sempre ao de cima". Quanto a esta última nunca o povo encontrou melhor imagem para explicar o que sente o ser honesto. Uma irrupção física e moral pelo corpo acima que conduz a uma urgência de tornar a sua conduta social, a sua vivência exterior equivalente à sua consciência interior.



O honesto não suporta viver na duplicidade de horizontes. É para ele insuportável ter uma consciência que não seja simultaneamente apreensível pelos outros, devido à sua omissão, ou mentira, ou incapacidade de explicar-se. A honestidade exerce uma tirania profunda no quotidiano da pessoa. A cada momento a sua mãe, a genuinidade, obriga-a a levar a pessoa à mais crua revelação.



Com isto não se depreenda que os honestos são pessoas superficiais e transparentes. Nada de mais errado. O que a honestidade obriga é a uma coincidência entre o mundo e as suas expectativas e a consciência interior. Num certo sentido, o objecto da honestidade é determinado por aquilo que a pessoa acha ser a ideia do Mundo sobre si. E uma profunda necessidade de manter o Mundo a par do que sente. O honesto tem pavor de defraudar o mundo, pois isso seria defraudar-se a si mesmo. A liberdade para o honesto nada mais é que sentir a sua verdade reflectida no mundo. Ora isso é simplesmente impossível se o mundo está em erro sobre si.



Mas o que o mundo desconhece e por isso não integra as suas expectativas ou exigências sobre o honesto, o honesto carece de revelar. Há uma profundidade na honestidade, por mais paradoxal que possa parecer, superior ao secretismo das pessoas dissimuladas, mentirosas, desconfiadas. A profundidade do ser honesto é uma profundidade livre e despreocupada. Aquilo que é do honesto é realmente dele pois caso o mundo o partilhasse e precisasse lá sentiria ele a irrupção da honestidade. Eis o que vai sendo a vida nas teias da honestidade: um percurso, nos caminhos do mundo, onde a cada momento se corrigem rumos, se trilham estradas, ditadas pela urgência de ser livre através da partilha do horizonte consciente com o próprio horizonte em que se sente. Eis a honestidade.

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