quarta-feira, 3 de março de 2004

Da arrogância e da contra-arrogância



Tal como o cinismo também a arrogância é muito mal compreendida nos dias presentes. Se se contam pelos dedos das mãos as pessoas que realmente compreendem o cinismo sem o confundir com hipocrisia, com a arrogância não se passa situação muito distinta. O mais interessante é que esta proliferação da arrogância errónea tem muito menos que ver com ignorância do que com uma profunda crise de fé. Ou, dito de outra forma, uma profunda impossibilidade de cada pessoa aplicar a suspension in disbelief à sua vida e às que a rodeiam. Paradoxalmente, como demonstram a literatura e o cinema, as pessoas estão, mais do que nunca, sedentas de crer. A suspensão de incredulidade que negam às suas vidas, por razões várias - crise das religiões, impossibilidade de parar o tempo e cheirar as flores, atentar no curso da natureza - é no entanto, sublimada, ferozmente, num profundo mergulho no que poderia chamar um paganismo idealizado. Das wiccas aos elfos de Tolkien mas passando igualmente pelo paganismo pós-moderno e niilista da literatura fast-food, cujos autores são por demais conhecidos e que me escuso de enunciar.



Dito isto está delimitado o espaço para a arrogância. A suspensão de incredulidade que as pessoas negam às suas vidas mas que as carcome por dentro, como vício privado inconfessável ou sujeito a disfarce em hábitos públicos leva-as a reagirem com desdém e crítica àqueles que crêem. Aqueles que suspendem a incredulidade e que estão dispostos a incluir nos caminhos possíveis das suas vidas, o desconhecido, o misterioroso, o mágico, o miraculoso. O, aparentemente, impossível. E, se de brocardos populares gosto, não resisto ao: as aparências iludem. Mas nunca o mundo das civilizações humanas se pautou tanto pelas aparências. Escrevia Rodrigues da Silva, no Jornal de Letras, há quase uma década, que a sociabilidade moderna é feita muito mais do que parece ser do que do que é. Sábias palavras e perfeito epitáfio para a crença. Não se iludam. A crença é uma profunda hipótese colocada ao que É e não ao que Parece Ser. Pois é por demais evidente que aquele que crê, crê numa verdade, por mais oculta que seja, por mais inatingível que surja e não numa aparência, sem prejuízo das ilusões da fé, como qualquer outra ilusão.



Assim hoje o simples e incauto crente passa por arrogante perante os seus amigos, vizinhos, colegas, concidadãos e todos os que com ele se possam cruzar. A mecânica desta rotulagem é de tal modo simples e viciosa que merece ser observada.



Quem crê não raro tem mais opções que os restantes. Depois de ponderadas todas as hipóteses, lucidamente, o crente, o apaixonado - pois todo o amor é uma crença - o louco, vê ainda uma ou um milhão de outras opções que estão para além de explicações e justificações, para além das aparências e que, no entanto, lhe aparecem, tão - ou mais! - claras que todas as outras. E assim se assemelha a sua conduta a uma conduta soberba, orgulhosa, confiante ao extremo. Arrogante. Assemelha-se pois a negação que todos à sua volta fazem da suspensão da incredulidade - de que Eco tão bem escreve - e assim apenas conseguem interpretar aquela clareza como presunção, aquela confiança como arrogância. E, no entanto, não se trata de nada disso. Aquele que crê, aquele que tem um horizonte distinto, aquele que ama, claro, só pode ser considerado orgulhoso, soberbo, presunçoso ou arrogante, na medida em que carece de uma explicação racional para a sua determinação, para o seu amor, para a sua felicidade. E mesmo assim persiste. Pois não suportaria ser de outra forma.



Pergunto-me: não será exigir tais explicações a suprema arrogância? Não será não compreender que o crente não é arrogante pois nada arroga mas vê e acredita, a suprema ignorância? Temo bem que sim.



Temo bem que os moldes em que a sociedade nos quer espartilhar estejam em bom ritmo e surja como muito mais sensato e curial empenhar 30 ou 40 anos no pagamento de uma casa ou torrar 10 ou 12 horas num emprego para perpetuar a ilusão socialmente induzida da normalidade. E assim ser um bom cidadão, devoto, humilde, sensato, ponderado. Do que enfrentar o mundo de peito aberto, sem as certezas sociais mas com crença no que se sente, numa lampadinha que teima em iluminar certas partes do caminho que se tornam assim certas em percurso.



Pergunto-me se a suprema arrogância não será afinal não nos questionarmos e não acreditarmos e sermos, ao invés, críticos obtusos e maquinais da fé inocente, deslumbrante e bonita de quem crê.



Seja louco, amante, místico. Ou simplesmente uma pessoa feliz.

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