domingo, 4 de janeiro de 2004

"Se tu reparares bem ao teu redor, quantas pessoas conheces tu que enveredem por essa viagem interior? Com quantas podes tu partilhar uma viagem assim? Daquilo que tenho experiência, e pouca obviamente, constato que as pessoas que realmente se conhecem a si mesmas e obtêm essa liberdade são muito mal aceites socialmente."



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As dificuldades da viagem interior



A perspectiva que adoptas é exactamente contrária àquela que utilizo. Mas tens absoluta razão.

Quando penso na viagem pelo mundo interior rumo ao regresso ao mundo exterior parto sempre de uma premissa fundamental: a necessidade do mundo interior e a sua prevalência. Isso mesmo tentei sublinhar em alguns dos últimos posts. Com isso, no entanto, deixei nas entrelinhas o preço a pagar. Que agora referes.



A viagem pelo mundo interior não só não garante qualquer recompensa no mundo exterior como pode mesmo provocar fracturas, cisões e todo o tipo de problemas. Tudo variará consoante a relação entre os dois mundos. Aqui é preciso acrescentar algo mais. Algo que não referi nos textos interiores. Algo que motiva, secretamente, o meu desejo de liberdade para os outros. Para ti.



Como chamar-lhe? Provação, tentação, sacríficio? Palavras demasiadamente conotadas com a religião, sobretudo a cristã. Também demasiadamente conotadas com a minha vida íntima pois de duas das pessoas que mais amo, uma acha que eu vivo noutro mundo, outra diz que tenho espírito de missão.



Poderíamos chamar-lhe crença em vez de fé para nos afastarmos da linguagem religiosa. Para entrarmos num domínio despojado da religião que deixasse apenas o imaterial. Aquilo que não pode ser atingido - completamente - pelos sentidos e, logo, pela razão.



Poder-lhe-íamos chamar o vazio, pois num certo sentido a liberdade que desejo implica um vazio, uma solidão do mundo. Como uma vez alguém escreveu: "implica um certo esvaimento de mundo/ficar exangue de tudo"



Mas pouco importa o nome que lhe demos. Importa o que é. E, em bom rigor, compreendeste bem o dilema possível daquele que toma o caminho da viagem interior. Se for inteligente e perspicaz ou dotado de uma aguda intuição compreenderá que esse é um caminho perigoso. E terá medo. A não ser que o mundo lhe interesse pouco. Ou, persistindo na metáfora alheia, que deseje ele mesmo o esvaimento do mundo e corte os pulsos, para ir ficando só, turvo, sonolento. Mas não falemos mais de mim.



Tudo redunda na última linha do que escreveste. Queremos ser aceites socialmente. Queremos ser aceites socialmente? Eis a questão. Eis a complicada questão



É um lugar comum afirmar-se que que o homem é um animal social, no man is an island. Tudo verdade, concerteza. Mas tenho para mim que na espécie humana, por razões que ainda hoje continuo a investigar, o grau de necessidade de inserção e aceitação social varia muitíssimo.



Assim, a tua simples expressão "queremos ser aceites socialmente" encerra um enigma. Pois haverá tantas aceitações quantas pessoas.

É verdade que a sociedade tentará pautar a natureza e grau de aceitação. Tentará estabelecer cânones ímplicitos de aceitação. Sabemos, em geral, como podemos ser aceites. Pela forma como beijamos, como nos vestimos, como falamos. Como agimos e como pensamos. Mas a multiplicidade de comunidades e das suas variações dão-nos, apesar de tudo, alguma flexibilidade. O espectro compõe-se, pois, desde o eremita livre à celebridade desejada e conseguida. Com múltiplos matizes intermédios. Embora tenha alguma simpatia pela figura do eremita e de todos aqueles que se retiram do mundo a verdade é que não o advogo. Penso que há outras maneiras de pregarmos uma partida à sociedade. Podemos dar-lhe o que ela quer sem nos darmos.



Não é isso que normalmente aconteceu. Temos, por um lado, aqueles que simplesmente não encetam a viagem interior e se conformam em grande medida pelo mundo exterior. Dão-se à sociedade. E temos aqueles que se recusam a fazê-lo porque tomaram outro caminho e estranharam-se de sociedade tanto quanto a sociedade os estranha a eles.





"Não digo no seu par que podem sempre encontrar e partilhar essa conquista, mas no geral. Na sociedade, para os outros desconhecidos. Digo que quem se conhece e se reconhece nos outros e eles em si, tem sempre relações dificultadas ao contrário do que poderíamos supor pelo que dizes no post inicial, e isto porque a quantidade de pessoas que se permite ter essa liberdade é muito reduzida (infelizmente)."



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Pois eu diria no par. Pois aí está a suprema dificuldade. A pessoa que se apresenta aos outros, sobretudo a um outro com quem deseje uma partilha máxima, acabado de regressar da sua viagem interior (onde querendo fazê-la com ela, o que é ainda mais difícil) é um estrangeiro num país exótico, falando uma linguagem esquisita. Requer-se aqui, e não vou de novo buscar a palavra crença, uma reaprendizagem da humanidade. Um relembrar o básico, como tudo começou.

Os seres humanos partilham aspectos naturais com os quais, ao longo de milénios, passaram também a partilhar aspectos civilizacionais. A estes não os contesto. Mas revolto-me contra a sua aplicação a domínios onde não são aplicáveis. Se alguém vem até mim com o seu mundo, por mais estranho que possa parecer, tal fascina-me e incita-me a partir à descoberta com um enorme espírito de tolerância e uma grande vontade de aprender. Terei por certo dificuldades, poderei sentir-me inseguro ou indiferente sobre as capacidades partilhadas de nos interessarmos mas tudo isso é superado por uma inexplicável (e tudo a isto remonta) crença na importância dos mundos interiores alheios. Tal como acho que a liberdade suprema é percorrermo-nos, excluídos do Mundo, nada me faz ficar mais enamorado de alguém do que descobrir-lhe um magnífico, genuíno e luxuriante mundo interior e uma profunda vontade de o partilhar comigo. Apesar de todas as contrariedades. E são muitas e as mais terríveis. Por isso diria que o par é o que mais custa a conseguir se enveredamos pela viagem interior pois a partir desse momento poderemos enganar todos os outros, com os conhecimentos incríveis que vamos conseguir mas passaremos a estar reduzidos a um número reduzido de pessoas com quem partilhar as nossas descobertas, o mesmo é dizer o nosso mundo interior desbravado. Serão apenas aquelas que aceitem o convite silencioso que lhe és dirigido, que dêem um passo de fé e que estejam dispostos a penetrar na escuridão provisória de um outro mundo. O nosso.



Ora imagine-se o medo que muita gente tem do mundo exterior, a dificuldade que sentem em crescer, a adolescência, os rituais de passagem, os códigos e pense-se no terror que é para algumas pessoas perceberem que terão de começar tudo de novo se pretenderem uma determinada pessoa. Felizmente para elas, as atemorizadas, e para os viajantes do interior é raro tudo isto ser assim tão claro.



Felizmente para todos muitos há que encaram o Outro e os outros com o mesmo espírito com que encaram a vida: o de um mergulho contínuo e interminável.



Assim também vejo de modo distinto o que dizes quanto as relações dificultadas com todos os outros para além do par. Esses, apetece dizer, são os fáceis de enganar. Esses nunca compreenderão os viajantes do interior. Penso que estás a partir de uma imagem de alguma excentricidade, loucura ou genialidade exuberante na tua análise. Mas caso o não estejas estarás, talvez, a pensar nos mesmos casos que eu: sentir-se-ão incompreendidos. Responder-te-ei, sem mais delongas, que é o preço a pagar. A não ser que queiras entrar num caminho de expressão do teu mundo em que se pode consumir toda uma existência. Expressar a tua visão sem compromissos quaisquer. É um caminho possível e muito honrado. E, de novo, não poderia concordar mais contigo: um que, à partida, pode nada de bom trazer. Mas como se aferem essas relações dificultadas de que falas? Pelos padrões das próprias pessoas que as dificultam. Acredito que aqueles que fazem a viagem interior passam a aferir tudo por outros critérios, como se estivessem permanentemente a ver algo que todos os outros não vêem. Um outro horizonte. Penso sempre em Gandhi. Mas tantos exemplos haveriam. Como os místicos Sufis, os Santos cristãos, os Xamãs turcos, entre tantos.



Se te referes a uma certa forma de marginalização contra a diferença, no sentido de que a viagem interior nos torna diferentes e um pouco rebeldes ao instituído, digo-te que não tem de ser assim. As primeiras e mais importantes mutações provocadas pela viagem interior fazem-se ocultas dos outros, exactamente porque se fazem cá dentro. A forma como depois o expressamos é uma nossa opção. Desde a rebeldia adolescente até uma invisível passagem pelas dobras dos dias, muitas são as hipóteses. É possível - sei-o - estar no mundo exterior à boleia, deixá-lo levar-nos mas sermos nós, afinal, a persistir na nossa viagem. Nem sempre temos de confrontar o mundo com o nosso próprio mundo, podemos apenas aprender a vivê-lo nas falhas do mundo exterior, como uma resistência subterrânea, oculta, desenvolvendo a sua missão.



Por isso, entendo ser muito mais complicado a partilha deste mundo com o par de que falas que, pelo meu lado, não merecerá menos que tudo, com toda a carga e dificuldade que tal acarreta - comunicacionais, sobretudo - do que com todos os outros, cuja ausência de intimidade, nos permite iludi-los com a aparente aceitação dos cânones tácitos que a sociedade faz correr nas suas veias.

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