quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

Palavra, essa filha da Razão...



Mantenho com as palavras uma relação de fascínio.

O fascínio, como se sabe, é neutro. Fascinamo-nos de Bem e de Mal, de igual modo, pois desconhecemos a natureza do objecto fascinante. O fascínio é isso mesmo: a incapacidade de objectivarmos um objecto. Todo ele é subjectivo. Escrito de outro modo, é nosso.

As palavras sempre exerceram sobre mim esse efeito. Desde que me lembro. Era incapaz de objectivar uma palavra. As palavras sempre me surgiram como minhas. Mas desenganem-se do modo simples. Não que um sapato fosse sempre o meu sapato. Ou a mulher sempre a minha mulher. Não. Não falo do objecto da palavra mas da palavra em si. A sua tradução, o seu significado, sempre me pareceram impossíveis. Assim, comecei por entender a linguagem impossível. Todas as palavras eram minhas, não tinha capacidade de as objectivar, de as entender como coisas em si, embora fosse capaz de entender que serviam para convocar nos outros objectos definidos. Dizia o "sapato vermelho que choraste" e as quatro palavras fascinavam-se. A sua combinação fascinava-me. Com elas eu era tudo. Podia multiplicar em mim as imagens de sapatos que os outros poderiam imaginar. E as suas combinações, pois o sapato era vermelhor. Mas de que tom? Vermelho mesmo ou carmim? Púrpura? Magenta? Para além disso, quem chorou? Porquê? Verdadeiramente não o queria saber. O que fascinava na palavra, como palavra que era, era a sua possibilidade. Sou como um cego pintando um quadro. Combino algo que não sei mas que sei que algo combinado será. As palavras permitiam-me isso. Uma combinação, louca tantas vezes - mas que importava? - de modos, de cheiros, de sentimentos. Plúrimos. Pois nada queria saber do espaço como cada um - os outros - iriam perceber as palavras. Claro que sei os truques do quotidiano. Esse lugar onde o fascínio da palavra se esbate. "O semáforo está vermelho" "então até logo às cinco" "são dois quilos de salmão" "o João está?". Sei que estas palavras são de todos. Fascinam-me em silêncio. Nas entrelinhas do meu sorriso que não desvendo, quando perverto no meu interior todas estas frases que preciso para me levar ao dia seguinte. O semáforo sangrento, as cinco garrafas de vinho que iremos provar, e três de gelado de amora...já agora, então se está deixe-o estar. Obrigado.

Por tudo isto um dia era inevitável que me lembrasse da razão, do que pensava dela e que se tornasse evidente o parentesco. Tinha dito, há muito tempo: a razão legimita tudo. Tinha cravado, sem saber como, este axioma por dentro da nuca, cantarolante, como cuco desacertado que apenas canta quando quer. Naquele momento acrescentou canto: a razão legitima tudo, a palavra significa tudo.

Aqui é o reino da palavra. Mas também lá fora. Para vos dizer algo são as palavras que me fazem acreditar num dos mais velhos lugares comuns, numa das maiores premissas da astrologia, num dos baluartes da teologia: todos os opostos emanam da mesma fonte. Digo, o amor e o ódio são o mesmo. Lembro Gibran, no Profeta, escrevendo algo como o Mal sendo o Bem consumido pela sua própria fome e sede. Eis o que importa. Odeio as palavras. Com elas, tal como com a razão, pode conseguir-se tudo. Tanto a razão como a palavra são amorais. Pior, carecem de uma ética. Quero dizer, não são finalistas.



O cheiro é finalista. Já aqui escrevi sobre ele. A íris é finalista. Em breve, de novo, escreverei sobre ela. Podem mesmo chegar a ser claras imposições. Evidências. Todas as evidências se impõem. É por isso que aqui escrevo, que aqui é o reino da palavra.



Lá fora - eis o paradoxo - estou cada vez mais cá dentro. Digo de novo, lá fora, no Mundo Exterior, estou cada vez mais cá dentro, no meu Mundo Interior. Lá fora as palavras são hoje por mim mais respeitadas: ligo-lhes menos. Voltei a dar-lhes o valor que devem ter: o de não pensar muito nelas. Ah!...com esta bem te enganei Razão! Daí Wittgenstein, lembrem-se....what can be said.... what can not be said we must pass over in silence. Nunca me canso de o repetir. Pois embora o cumpra lá fora, aqui não. Aqui busco a límpida medida e a busca não é clara. É qualquer coisa em movimento, que não se importa com o que é. As palavras, pois, são aqui cada vez mais as filhas da razão.



Mas a verdade é que também amo as palavras. Pois se elas são filhas da razão, que me perturba pela hegemonia que sempre quer ter de mim, por outro lado, as palavras permitem-me a variedade, a liberdade. Uso-as para ser mas não prendo os outros. Nem a mim. A minha frase sendo minha e dos outros, permite-se a traduzir o mundo à maneira de casa um. Nada há de mais belo que isso.



Este espaço é um bom exemplo. É a maneira de manter a razão fora da minha vida no Mundo Exterior, de que este ciberespaço faz parte como, mais do que um limbo, uma Terra de Verdade. Aqui a razão pode ter a ilusão - esperemos que não nos ouça - de que manda. De que o projecto iluminista continua na minha cabecinha a fazer sentido (não tenho remorsos: o racionalismo ganhou a toda a prova, a civilização ocidental tem todos os seus valores assentes na razão, não sentirão a minha falta). Mas não faz qualquer sentido. No meu mundo interior como no mundo exterior e no meu mundo convergente, o irracional manda. Vénia a Diónisos.



Este espaço surgiu como espaço duplo. Desde logo o parque da Razão. E depois o domínio, onde, de bom humor, concretizada, poderia melhor servir o meu (seu) propósito. Partilhar-me na linguagem que melhor se coaduna a este espaço: a palavra. A sua filha impera aqui.



Lá fora, como Cá dentro (refiro-me ao mundo interior não ao ciberespaço, não se percam) a intuição vive. Há os sentidos. Os olhares e os cheiros. Os toques. Há o sentimento do oculto que nos envolve. Há um horizonte mágico.



Aqui há tudo isso, pelas palavras. Para que se busque, também por este modo, chegar ao Mundo, ao meu mundo. Onde for.



Alonguei-me sem certezas de que tenha deixado explicado a relação de amor-ódio às palavras. Ao que elas têm de significante e significado. À forma como são nada pela ilusão que podem ser. E como são tudo pela liberdade que concedem. É um paradoxo e resolve-se assim: mantendo a liberdade e desiludindo a palavra, ou seja, dando-lhe certeza fora dela. Fora da razão.



Não há melhor exemplo que este. Tinha de ser este.



Digo-te, amo-te. Não te deixes enganar são só palavras. O seu sentido, sei que o sabes, não está nelas mesmas. Mas em tudo o resto. Eis onde temos de matar a ilusão. No som das palavras. Temos de aprender que elas podem querer dizer o que dizem mas que isso não depende delas. Eis a beleza e o horror das palavras. A dependência que abrem aos corações humanos, à sua maior sensibilidade às palavras. À possibilidade que tenho de dizer a alguém que amo sem o sentir mas - por Zeus - tê-lo dito! E alguém me poder dizer, chorando: "mas disseste que me amavas!"



Como posso dizer que te amo e não teres qualquer dúvida pois mal ouviste as palavras, buscaste o Resto.



Na verdade, matamos as palavras, essas filhas da razão, quando as aceitamos na irracionalidade.

Na verdade, soubeste (ou sonho com a mulher que saiba) que te amo quando te disse;



"Olha bem este mar"



E coloquei o braço à tua volta. São só palavras. E eu estava a dizer que te amo.



É só um exemplo. As palavras desfazem-se assim. Abre-se um mundo louco de possibilidades. Frases que servem para uma coisa podem significar outra. Eis o mundo onde vivo. Embora tenha também de viver Aí Fora.



Eis porque temos de matar uma certa Palavra, aquela que é filha da Razão. Eis porque a temos de salvar.



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