quarta-feira, 21 de janeiro de 2004

Nossa Senhora da Assunção



Este texto deveria começar com a frase: "Odeio pessoas que assumem..." e tudo se desenvolveria daí. Mas começará de outro modo.



Convivi durante anos com uma pessoa que me criticava por usar a palavra "odeio...". Este exacto tempo verbal. Intenso. Forte. E simples. Acompanhado de algo que definia o meu...bem, o meu descontentamento, a minha ira, a minha raiva. Mas nunca ódio. Eis a questão.



Porque uso eu, então, o verbo de forma errada? Porque, como já aqui tenho desenvolvido repetidas vezes, as palavras fascinam-me. E aqueles que vivem com o fascínio/praga da palavra, saberão, tão bem quanto eu, que a palavra fascina por tudo mais do que o seu significado. Que, entretanto, se perde, molda, relativiza, dilui. A palavra torna-se um fim ela mesma. Eis o seu perigo. Aquele que vive fascinado pela palavra e na sombra da sua maldição sofre com isso mas pode causar também grande mal. É que perde a consciência emocional do significado da palavra. Como eu, com o ódio.



Trata-se de muito mais do que uma polissemia, uma riqueza lexical que ultrapassa o uso simplório da palavra, restrita a um ou pouquíssimos significados. Trata-se de criar com a palavra um significado. Não a referir a nada. Ela mesma conter o seu referente. Assim, digo odeio como sinónimo de intensidade momentânea, ou seja, com um significado que nada tem que ver com o designado pelo verbo odiar. Odeio, expressa a minha desaprovação clara por algo. E nada mais.



Já a minha atenta crítica temia a palavra "odeio..." e sempre que a dizia acrescentava que ela não odiava nada, pois o ódio era um sentimento horrível. E há-de ser verdade, suponho.´



As pessoas que mais temem e respeitam as palavras são as que melhor compreendem o seu significado.

E que mais o sentem.



Isso é claro. Ora, eu desconheço o que seja o ódio e com esta ressalva feita, partamos.



Odeio pessoas que assumem. Desaprovo-as claramente. Enfim, irritam-me um pouco. Nada há pior do que a assunção.



Mas atenção.



Nada há de pior do que a assunção errada. Voltamos a um tema recorrente no Límpida: a sagacidade. A capacidade de perceber instantaneamente a dinâmica equilibrada do Cosmos. Errado é assumir-se em domínios em que a assunção é perniciosa. Diria mais, quase todos os problemas actuais da humanidade se devem à assunção. A errada e precipitada assunção. E não me refiro a fomes, guerra e hecatombes. Refiro-me as discussões domésticas, às tensões profissionais, às quesílias fraternas, às discussões entre amigos. Assumiu-se demais. Assume-se por tudo e por nada.



Por mais enervante que fosse Descartes, conseguiu pôr a dúvida metódica no mapa. Duvidar, duvidar saudavelmente. Mais e muito importante. Duvidar sobretudo do que mais damos por adquirido. Assumido. Duvidar sempre.



Sócrates lhe deu essa ideia. Eis o homem de todas as dúvidas. O homem que duvidou de si até ao nada. O nada genésico da reconstrução. Perpétua. Sempre em dúvida.



Depois veio o Iluminismo - a Ascensão da Razão, a Assunção da Razão. Assumir tornou-se filosofia de ponta. Assumir cientificamente, claro está. E menos mal.



A assunção perigosa sempre existiu. É uma espécie de sede enlouquecedora do ser humano. A assunção para garantir o descanso do espírito, para calar as vozinhas interiores, para matar as dúvidas. Assumir, em força.



E assumir é perigoso pois mais não é do que atribuir a comportamentos, palavras e/ou ideias justificações ou motivações que ficam por provar. Assume-se que.... e todo o Inferno se abre. Ou, para os pagãos, toda a caixa de Pandora se escancha.



A tentação é fácil de explicar: 99% das nossas assunções estão invariavelmente correctas. Sobretudo se formos ser básicos.



Além disso há factores agravantes. A intuição apura a assunção. Para mais de um modo inexplicável. Sim, pois a maioria daqueles que assumem juram conseguir explicar porque assumiram.



A assunção é grave pois, além de substituir a comunicação entre as pessoas, por muito dolorosa e desafiante que possa ser, afasta os mundos. Assumimos com base nas nossas regras. Mesmo quando tomamos o outro como paradigma, é a nossa ideia do outro que usamos. E, assim, assumimos.



A assunção é uma consequência e uma arma da modernidade. Do aceleramento do tempo, da multiplicação de relacionamentos. As pessoas preferem não perder tempo a conhecer-se. Ou, pior e mais comum, assumindo que já se conhecem, não perdem tempo a perceber as mutações nos outros. E em si mesmas. Assumem que o que sabem de si mesmos e dos outros lhe basta, como uma espécie de cartilha imutável para a vida. Eis a fatalidade da assunção.



O mais interessante é que as causas da proliferação da assunção são justamente as mesmas que nos deveriam alertar, em definitivo, para os seus perigos. É justamente porque temos menos tempo e mais estímulos que a assunção nos deve ser estranha. Pois aumentam também as razões de justificação dos comportamentos dos outros. Ou seja, hoje, ao assumirmos algo estamos a excluir muito mais hipóteses do que anteriomente. Hoje para explicarmos um comportamente errático de um amigo, namorada, conjuge ou irmão temos muito mais variáveis em presença. E, no entanto, assumimos.



A assunção é, assim, muitas vezes confundida com o mal-entendido. Desenganem-se. O mal-entendido é um anjinho comparado com a assunção pura e dura. No mal-entendido a comunicação conheceu ruído, na assunção não há comunicação. Há o silêncio que medeia a reacção à assunção. Eis onde todo o Inferno, já solto, se multiplica.



Começa o enredo telenovelístico: porque é que fizeste isso? Porque pensei que tinhas dito aquilo por causa daquela outra coisa. Porque é que não perguntaste? Ora, vi-te daquela maneira, percebi logo que tinha sido por causa daquilo. Mas não foi, foi por causa daquela outra coisa. Como podia eu adivinhar? Porque não perguntaste? Agora eu é que tenho de perguntar? Sim, podias preocupar-te comigo. Falasses tu! Eu falo quando preciso, não tenho culpa que tenhas ficado com esses estigmas da família. O quê?! e tu toda contentinha pelos cantos por causa daquele...



E assim sucessivamente porque não se está a falar de nada. Já se assumiu tudo e entra-se numa conversa de puro e profundo autismo.



A assunção mata. Não há que duvidar. Mata emoções, sentimentos, relações, desejos, vontades. Mata ferozmente. Mata tudo. E pior, não se consegue muito bem provar que foi ela...



E, por tão pouco se poderia evitá-lo. Com apenas uma breve serenidade relembrar que não sabemos tudo, que nunca conhecemos ninguém assim tão bem, que mesmo que achemos que o fazemos há dias complicados. Que toda a realidade é diversidade. Mesmo, e sobretudo, na intimidade.



Essa capacidade de olhar para tudo e principalmente para o mais íntimo com renovado deslumbre - genuinidade chamo-lhe - é o antídoto da assunção. Pois esta mora nas dobras do hábito,do medo, da insegurança.



E mora, voltando ao início do texto e as assunções erradas, na crença. Eis a assunção certa. Eis a única possível. Eis onde a assunção é o que deve ser. Só podemos assumir o que não podemos saber. Eis um dos mais perfeitos paradoxos.



Eis a Nossa Senhora da Assunção. Repare-se no simbolismo. Deus recebe Maria, em corpo e alma, por ela ter crido Nele. Crido em quê? No milagre da geração por graça do Espírito Santo, após a Anunciação. Percebem o que estou a escrever...



A assunção é assim possível nos domínios onde nada mais é permitido. Onde a comunicação é impossível e, logo, despicienda. Assim vale assumir aquilo que está para além da comunicação, da dúvida, da partilha racional.



E um novo mundo pode, então, desvelar-se perante nós. Uma assunção que também pode ser partilha mas uma outra partilha, uma que não motiva reacção mas antes contemplação. Satisfação. Uma partilha com os outros que se basta em nós e que não nos condiciona em relação aos outros e ao mundo. Pois eis onde mora o maior perigo da assunção: levar-nos a fazermos dos outros meras construções pessoais completamente distintos do que são na verdade. E assim se perdem muitas profícuas relações. Muitas profundas partilhas.



Há apenas uma assunção benevolente, aquela de que falam os poetas. Esses que assumem, inequivocamente, a sua vontade de desfiguar o mundo, de cometer enganos, de tomar os significados do universos e moldá-los em novas formas. Só essa assunção, aceite, percebida, é justa. E boa.



Tudo o que resta é uma ilusão do mundo. Deixem-me ser cru. Um assassinar o Outro, pela sua desconsideração.

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