terça-feira, 13 de janeiro de 2004

Não te esquecerei nunca



Norberto Bobbio - 1909-2004



O mundo político - o terrível mundo político - sempre me fascinou. Mas cedo percebi que o meu interesse pela política seguia o curso dos meus restantes interesses: uma voracidade insaciável, redundando em infindável busca.



Explico.



Interessa-me o fenómeno político enquanto estudo da determinação dos fins comuns de uma comunidade e dos melhores meios para os atingir. Com esta noção de política associada à minha personalidade fui paulatinamente percebendo que, primo, nunca estaria completamente satisfeito com uma ideologia, pois estas têm uma natural tendência para se cristalizarem - estou a ser suave, deveria dizer, rigidificarem - negando assim toda a flexibilidade (sinal de inteligência) que devem, para mim, conter as relações humanas, maxime, as políticas. Mas o homem é também feito do seu mundo - tão aqui discutido - e por vezes contagia a política e o plural com as suas próprias inflexibilidades.



Parêntesis: nada há de pior que a impropriedade. Não saber o lugar das coisas. Subverter (e não estar preparado para as consequências) a lógica natural do Mundo. O Mundo castiga sempre. Tanto pior a falta, tanto pior a consequência. A 3ª lei de Newton explica...



Assim, onde a inflexibilidade deveria reinar - no íntimo, nuclear e individual de cada um - a honra, a ética, os princípios, ela soçobrou. Renascendo onde não pode e por isso se estranha, preverte, subverte e, finalmente, modificada, com uma aparência aceitável faz, subrepticiamente os seus estragos. Assim com a política.



As ideologias, os partidos. A imbecilidade.



Pior, o dogmatismo, a doutrina do tapa-olhos mais que qualquer outra.



E onde a flexibilidade, a capacidade de concertar aspirações e ideias deveria reinar, impera, assim, um básico e redutor vazio humano



Fecho parentêsis.



Secundum, o debate político que me interessa é um debate de ideias que o partidarismo implantado espartilha de um modo que é, para mim, absolutamente impossível. Interessa-me pensar sem quaisquer constrições e condicionalismos outros que as minhas próprias convicções. Mesmo que isso me eive de contradições, que deverei, depois, resolver. Ou não.



Coerência, sim. Mas aos meus próprios ideais, não a ideais que se absolutizem e autonomizem de preocupações práticas dos problemas reais da comunidade política.



Neste meu fascínio pelo pensamento político puro, como gosto de lhe chamar, distante da pequena política partidária que visa o poder, sem muitas vezes apresentar um projecto para esse poder (ou, ao contrário, que apresenta projectos para um poder que não pretende), fui guiado por um conjunto de pensadores que, tal como desejava para mim, não se deixavam encerrar por ideologias mas antes as procuravam usar para se melhorarem e ao seu pensamento político. Com que contribuiam, originalmente para a comunidade.



Eis Norberto Bobbio.



Um homem, acima de tudo, anti-fascista, simpatizante do socialismo mas pensador da política para além das meras ideologias. Sempre com os fins humanos como última motivação. Para ele, mais importante do que tomar decisões, por mais necessárias que sejam (e são), era pensar o conteúdo das decisões. De modo a garantir a correcta motivação das mesmas (uma verdadeira motivação Política) e não apenas uma motivação política(-partidária) de manutenção demagógica do poder. Ou de destruição demagógica do poder.



Foi sempre um pensador moderado, querendo com isto dizer que não perfilhou dogmatismos e exageros antes pretendendo sínteses e melhorias. Sinal disso mesmo é o título emblemático de uma sua obra: "Nem com Marx nem contra Marx". E no entanto, como notava um jornalista do El Mundo, não se deve confundir a sua moderação com indefinição. Bobbio sempre foi claro nas suas posições mesmo que tivesse de se esforçar por explicá-las com mais detalhe. Como se sabe é muito mais fácil expressar extremismos do que inteligência.



Mas de Bobbio, no que toca ao seu pensamento político destacaria o aspecto que mais me marcou. Aquele que um dia me deixou maravilhado com as suas palavras ao descobri-las como expressão pura e magnífica dos meus pensamentos trôpegos. Esse aspecto pode ser chamado de núcleo duro para uma matéria maleável. Bobbio sempre apoiou todo o seu pensamento política numa intransigente defesa dos princípios da justiça e da democracia e bem assim das liberdades fundamentais. Com isto por bandeira, discutia, depois, variadas soluções políticas, mesmo que com isso partilhasse ideias caras à esquerda e à direita. Bobbio, sendo, inequivocamente, de esquerda, era-o no seu sentido mais puro. De que a esquerda é, acima de tudo, igualdade, justiça e liberdade, assentes numa tolerância por quem tolera, permitindo-se assim o nascimento de um espaço para ulteriores consensos políticos e paras as decisões quotidianas.



Bobbio pretendeu que a democracia imperasse, com ela os seus princípios co-naturais, e daí surgisse o caminho. Escolhido pela comunidade política na posse inalienável dos seus direitos, fosse qual fosse a sua orientação.



Eis um homem que não se subordinou à mesquinhez mas apenas aos ditames do seu pensamento e das suas mais profundas convicções.





O homem que um dia se definiu assim:



"Dalla osservazione della irriducibilità delle credenze ultime ho tratto la più grande lezione della mia vita. Ho imparato a rispettare le idee altrui, ad arrestarmi davanti al segreto di ogni coscienza, a capire prima di discutere, a discutere prima di condannare."



Eis o homem que confessou, um dia, "detesto i fanatici con tutta l'anima".



Humano, profundamente. Isso mesmo converteu em pensamento político. Os humanos, e tudo o que é naturalmente humano, ao poder. Assegurado isso, a liberdade na escolha das formas (dizia brincando que assim se limitaria a direita e a esquerda).



A democracia, segundo Bobbio.







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