segunda-feira, 5 de janeiro de 2004

De gostar de ti até amar-te



Há manias que se tornam símbolos. Há símbolos que se tornam manias. Estudo (e talvez viva) a loucura há tempo suficiente para saber que a loucura é totalmente simbólica. Uma mania é em si mesmo a geração de uma linguagem simbólica. Pois uma mania é uma dispersão e como tal só poderá exprimir-se através de algo que seja vário.

Por outro lado, há símbolos, enquanto multiplicidade possível de objectos, que se tornam uma evocação de um significado próprio. Assim tornam-se ainda mais símbolos e transformam-se em mania. Em obsessão de expressão, como se a expressão fosse a própria identidade.



Disse a muito poucas pessoas que as amava. Aliás, tenho para mim uma divisão clara no meu horizonte. O amor aos pais, enquanto amor imemorial, incontrolável e ideal. Amo-os porque são os meus pais. Tão simples quanto isso.

O amor aos meus amigos. Entenda-se para mim a amizade é uma categoria. Olho-a como uma casta, um clube restrito, um mistério oculto. Os meus amigos são os iniciados na religião de Mim. Muito difícil de entrar, quase impossível de sair. Se pronuncio a frase "amo-te" em relação a um potencial amigo, então deixou já de ser potencial. Olhei para trás, reconheci-o como amigo e proferi a Frase. É a que pronuncio mais facilmente pois tenho amigos desde há muito, vários e por múltiplas razões, boas e más, importa por vezes exprimir em intensidade e infinitude o sentimento que nos liga e orienta. Amo-te.



Resta o amor romântico ou erótico. Ou, como gosto de lhe chamar o Amor. Aquele que escapa à derivação do sangue mas que se propaga noutros corpos. Aquele que combina traços dos pais e amigos, sendo algo distinto. Precioso por raro. Precioso por intenso e poderoso.



Senti-lo em relação a alguém é já de si entusiasmante pois implica, falo por mim, um estado de clareza, de límpida medida, muito difícil de atingir.



É algo que se ancora de olhares mas que é espiral, aura, auréola em torno dos corpos. Como se os corpos deixassem de ser o que a existência tem de visível e nos vissemos realmente como humanidade que somos. Algo que transcenda os sentidos e se propaga imaterial. Não sei se, nesse momento ou com este sentimento não seremos divindades. Sei que tudo começa no olhar. Something in the eyes. E daí ao dia em que teremos a certeza do Amor, pode ser um momento ou uma eternidade mas sabemos que acontecerá. E o mais doce e terrível paradoxo toma lugar. Esperamos pela certeza do Amor mas essa espera é em si mesma o Amor. Again, it's something in the eyes, all the rest is silence or casual words. It will not matter. For the eyes have spoken. They know more than we do. The iris speaks our true language.



Ficamos enlevados pelo que ela nos diz, que é incompreensível na sua totalidade, logo o paradoxo, pois apenas a sensação nos basta e confirmar o Amor torna-se tão urgente e desesperante como desnecessário e supérfluo. Subitamente, num momento, a Íris falou. Os olhos falaram e o Amor surgiu. Esse, que é verdadeiro, consome a existência de um modo nem sempre bem explicado: substitui-se pela Vida. Torna-se desnecessário viver.



Viver, antes de mais o quotidiano. Perguntar a um Enamorado como pretende o seu Amor é querer ouvir silência, ver um sorriso e um encolher de ombros. Ele não entende. Isso é linguagem de vida. Ao Enamorado pouco importa o casamento ou o divórcio, as compras ou os impostos, a vida em conjunto, os filhos por ter. O Enamorado ama. Pode, aliás, nem estar com o seu Amor. Tem-no. E, a partir desse momento, toda a sua vida será a descoberta das formas de Amar. Tornar o Nome um Verbo. Acção. Tempo e Espaço. Talvez consiga regressar à Vida. Mas não se iludam será apenas algo que se assemelha à Vida. Poderá continuar o seu quotidiano. Ir trabalhar, depois para casa. Um passeio de vez em quando. Cinema. Conversas. Um jantar. As compras. Limpezas. Mas tudo isso será Amor. Tudo isso existirá para ele, Enamorado, como algo que colora e compõe a substância do Amor, o conteúdo do Amor. Sempre a sua Ideia, o seu Corpo, o seu Rosto o acompanharão. Ele Ama.



Esta revelação em mim contagiou as palavras. Paradoxalmente, pois as palavras são as filhas da razão e eu mantenho uma relação conturbada com a razão. Talvez por isso a Frase que no meu entender, no meu pensar, exprima o Fim da razão, seja tão preciosa. Seja uma mania e um símbolo.



Se de fins falamos comecemos pelo fim. Um símbolo pois pronunciar "amo-te" torna-se um sinónimo de sorrir. Será tema para outro texto mas para mim sorrir é a condensação máxima da humanidade. Se queres exprimir num gesto, num instante o impossível, o improvável mas o importante, o necessário, o urgente - o Amor - sorri. Ou, como estou explicando, diz Amo. Te.

Certo é que não é tão poderoso e infinito como um sorriso mas é igualmente forte. Expecialmente se o tornarmos uma mania. Se pronunciar "amo-te" se tornar uma raridade por obessão. Ou melhor dizendo, se só o disse a quem realmente amo. Se não amo, digo gosto de ti.



Pensamento imediato: Oh que horror será para as pessoas que estiverem contigo não ouvirem essas palavrinhas, que tanto prazer dariam não fosse essa estúpida mania de guardá-las para algo que se calhar nem existe. Tudo verdades. Pode fazer-se alguém feliz dizendo-lhe que se a ama. E o verdadeiro amor pode nem existir (afinal falamos dele à milénios e nunca o demonstrámos - um pouco como Deus). Mas se as palavras são assim tão utilitárias, se as devemos orientar para um fim e usá-las como um meio então por que não usar outras e deixarem-me com esta pequena excentricidade? Porque não posso dizer gosto de ti para fazer os outros felizes e salvaguardar o amo-te para o meu abraço das íris? Para o meu Amor?



Esta é a minha mania e o meu símbolo.



O "gosto de ti" complementa e prolonga este modo de ser. Gosto de ti, digo-te, é o valor que te dou. Se um dia te disser que te amo saberás que algo é diferente, mesmo que nunca tenhas compreendido a importância do "gosto de ti" pronunciado ou do "amo-te" até esse momento de ti.

Por outro lado pronuncio o gosto de ti numa outra ocasião excepcional: quando o meu Amor se magoou. Então envolvo-o em Tudo, pais, amigos e ele mesmo e ao meu Amor, que o deverá perceber, digo: gosto de ti.

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