quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

Para ti



Para ti desejo, como desejei sempre, a liberdade.



Não quero conversar contigo sobre o que é a liberdade. Não agora. Quero dizer-te o que é a minha liberdade, que coisa é esta que quero para ti.



A liberdade que te desejo é uma faculdade, uma capacidade. Uma visão feita passo.

Explico.

Uma capacidade de seres para além do Eu, que provavelmente, como todos nós, constróis ainda e buscas saber o que é. O que és. Mas não estamos sozinhos nessa busca e como tal não somos só esse Eu que se busca e se constrói, que se procura como ser andrógino platónico. Somos também inspiração, crença e irracionalidade.



A liberdade de que falo está, por isso, para além de uma identidade comum construída através das relações que mantemos, sejam elas de amizade, amorosas ou profissionais. É, num certo sentido, uma aparente contradição do existencialismo. Mas, a mim, parece-me um seu complemento. A existência livre que te desejo há-de incluir não apenas aquilo que vivemos no confronto com o mundo exterior, aspecto muito trabalhado pelos existencialistas, mas também e sobretudo aquilo que vive no teu interior, oculto de ti, mas pulsando. Um pouco à maneira mística. Mesmo que não encontres deus ou deuses no teu fim.



O que te desejo é uma liberdade que significa seres tudo o que ser é. O teu ser. Livre daquilo por que nos habituámos a gritar liberdade. Tudo aquilo em que procuramos construir o nosso Eu pode ser a sua maior armadilha. Não nos devem bastar as sensações e as experiências vindas do exterior, mesmo com as importantes repercussões e reflexões íntimas. Por mais, que te custe acreditar, o teu interior é rico e vasto e por muito que te amedronte é teu. Desejo que te encontres com ele e o vivas plenamente, qual seja o seu sentido. Eis a liberdade que te desejo. Uma liberdade que é assim, também, libertação de tudo aquilo que queres e/ou podes construir com base no passado. Também o passado deve ser equilibrado e temido. Nem tudo o que sempre correu numa direcção o fará para sempre. Heraclito ficou famoso por ter dito que o rio nunca passa duas vezes por baixo da mesma ponte. Mas o Obscuro acrescentou ainda, com menos fama, que nada garante que o rio um dia não corra para a nascente. Peço-te - desejo - que te libertes um pouco - não totalmente, sacode, apenas - da opressão do passado. Ele ensina tanto quando condiciona. Ouve-te e que essa tua voz seja tanto passado e experiências como a intemporalidade e a genuinidade que habita a crença além razão. A humanidade é (também) isso.



A liberdade que desejo para ti, e para mim também, não é, pois, uma liberdade adolescente de fazeres tudo aquilo que quiseres. Contém-na na medida em que da liberdade que te desejo decorre uma ampla possibilidade de movimentos. Senão mesmo total. A liberdade que desejo é não a de fazeres tudo o que quiseres mas de seres tudo o que és. Tudo o que és.



Aceitamos viver e morrer pensando com apenas 10% do cérebro. Aceitamo-lo pois não o sabemos fazer de outra forma. Mas não temos de fazer o mesmo com as nossas emoções, com os nossos impulsos, com os nossos gestos. Com a nossa identidade. Podemos mergulhar em nós tanto quanto no mundo, procurando combinar esse vasto mundo universo com o nosso infinito diverso.



A liberdade que desejo para ti é que sejas o que quiseres pois quanto mais o buscares mais te amarei por isso. Mesmo que essa busca te leve para longe de mim, em terras ou ideias. Mesmo que um dia deixe de te reconhecer, embrenhada que estejas na descoberta e combinação do teu mundo, das tuas trevas ocultas que foste desbravando. Ou luz.



A liberdade que te desejo é um caminho interminável de vela trémula em punho rumo aos mais recônditos lugares de ti mesma. Admito, vai um elogio neste meu desejo. Para muitos esta viagem seria curta e em breve terminaria numa passagem de volta ao Exterior. Mas em ti entrevi ou creio uma imensidão oculta de ti. De ti mesma. Eis o meu desejo: que a percorras e ilumines como queiras e como possas, numa toada de descoberta e criação. Que o teu mundo se espalhe em luz por Aqui. Que o libertes é a liberdade que desejo para ti.



Desejo-te que sejas livre. Que mergulhes em ti. Mas verdadeiramente, nos pontos em sejas cega, em que tenhas medo, nos lugares que penses já conhecer voltes de novo com um outro olhar. Desejo que te ponhas em causa onde menos te ponhas em causa. Que desistas de ponderar e sofrer pelo que sofres e sofras por tudo aquilo que sempre consideraste porto de abrigo. Desejo que a tua liberdade seja, nesse caminho pelo oculto de ti - que é muito e luminoso tanto quanto negro - que te reinventes até ao regresso a ti. Aqui.



Desejo-te tudo isto porque te amo. E a liberdade é uma outra forma de amar. Porventura menos certa para os corações temerários mas cheia de força e vida para aqueles dispostos a darem um passo de crença, no véu de desconhecimento avante. Mas toda a vida é incerteza.



A liberdade que te desejo é indigente e nómada e não sou dos que acredito que haja qualquer beleza e romantismo nestas realidades. A liberdade que te desejo é desconfortável, incómoda e assustadora. Mas pode ser igualmente serena, sorridente e confiante.



A liberdade que te desejo não te impedirá de chorares e de te ajoelhares à morte de quem amas. Mostrar-te-á que apenas te resta que o faças. Mas esta mesma liberdade deixar-te-á fazeres amor mesmo quando estejas cansada e triste pois escutarás o som emergente do teu corpo que o deseja e se deseja de calor.



É uma voragem. É uma voragem caleidoscópica. É assim a liberdade que te desejo. Mas sobre ela, depois de a descobrires, podes fazer o que quiseres. Podes mesmo voltar ao dia de hoje, ao que és agora. Talvez não fique sequer uma nostalgia das descobertas que tiveres feito. A liberdade que te desejo não perdura, apenas dura enquanto a prosseguimos. A conseguimos. É uma liberdade dinâmica, natural, telúrica.



É uma liberdade que existe antes do Eu, dessa imagem que queres ter de ti para poderes decifrar as coisas, para as poderes entender em relação a ti. Pois bem, esta liberdade que te desejo não te permite esse desenho do local das coisas no universo. A liberdade que te desejo é, ela mesma, um universo em que és, permanentemente, uma nova relação com os objectos e de certo e seguro só existe o que tu quiseres dentro de ti. Lá fora o Caos, ou se te assusto, um Cosmos que não entendes. O que é o mesmo. Mas podes dar-lhe uma outra linguagem, não precisas de te refugiar na tua e do que se parece contigo (repara, parece) ou desesperares na tentativa de perceber. Afasta-te dos dogmas que nos isolam em grupos decadentes de ensimesmamento, em que nos repetimos de gestos, gostos e emoções. Afasta-te também de um simbolismo, surrealismo ou pós-modernismo que tente ou destrua a linguagem universal. Não te digo que ela não exista. Mas somos apenas humanos, podemos nunca entendê-la. A liberdade que te desejo levar-te-á pelo meio destas tentações. Poderás acabar ou caminhar por uma delas mas sê livre: sê o que escondes. A maior parte - acredito, a melhor - está oculta de ti. Mesmo onde possas viver mais.



Desejo para ti que te libertes do Eu e sejas.

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