domingo, 28 de dezembro de 2003

O Fim



"... Desejar esta liberdade a alguém, ainda mais por amor, é desejar-lhe o fim. O que existe em nós depois de sermos? O que podemos ser para os outros tendo tido a liberdade de ser para nós mesmos? Há quem diga que a condição humana foi criada porque o homem não tinha a capacidade de aguentar a sua liberdade, de ser. O homem não vive só, nem eu, nem tu, nem a tua amada. Ser livre é morrer. Morrer socialmente, viver livre em nós e morrer para os outros, pois o eu reconhecível não está lá, já não existe, e muito poucas vezes é capaz de ser recuperado. Compreendo tão bem esta capacidade de amar, mas sei que o espelho não reflecte duas faces, o fora e o dentro, e sei que quem está de fora apenas pode escolher o fora, e isso é o fim..."



Figment



Há duas temáticas, que se entrecruzam, que aqui servirão de mote às próximas linhas: O mundo interior e o mundo exterior e o Fim.



Comecemos por recenseá-las separadamente.



O mundo interior e o mundo exterior, a sua composição e oposição, já aqui foram abordados sob várias perspectivas. A minha posição, para o que nesta discussão importará, é a de que o mundo exterior e o mundo interior não se excluem naturalmente, embora diagnostique uma tendência opressiva do mundo exterior sobre o mundo interior. Esta opressão não é nova. Num certo sentido sempre o mundo exterior tentou enquadrar o mundo interior dos seres humanos e sempre alguns se rebelaram contra essa normalização do íntimo. Mas este ponto é apenas percursor do que aqui realmente importa. Os dois mundos existem, interagem, no sentido de que se entreconstroem. Acontece, no entanto, que a importância e prevalência desses mundos é, em primeiro lugar, a priori distinta em cada ser humano. Acontece, em segundo lugar, que a forma como nos determinamos a cada um desses mundos é também distinta de pessoa para pessoa. Assim, o destaque e importância que damos ao mundo exterior e ao mundo interior varia consoante um número plúrimo de influências e critérios. Eis onde começa a reflexão.



Se pretendermos delimitar o espectro do que falo os dois limites serão, de um lado, o autista, que consubstancia a total imersão num mundo interior com reduzida interacção no mundo exterior (menor só seria compaginável num coma); e, de outro lado, uma outra forma de patologia, cujo modelo mais próximo que encontrei pode ser entendido no homem da Loucura da Normalidade de Arno Gruen, em que o ser humano se nega, enquanto pulsão autónoma e se molda totalmente aos desígnios e regras desse mesmo mundo exterior, independentemente de escolher um sub-mundo exterior.



O restante espectro é uma gradação de intensidade entre um ponto e outro. É aqui que se pode fazer a relação com o que disse anteriormente sobre os solitários e os temerários. Não acrescentarei muito agora. O ponto que quero fazer é que o ser humano que desejo, o ser humano feliz em si mesmo, deve conhecer os dois mundos, mas com primazia do mundo interior, pois ele é, para mim, a chave do mundo exterior. Não defendo uma exclusão de um ou outro, mas temo a primazia do mundo exterior sobre o mundo interior, sobretudo como forma do próprio de se esconder de si mesmo. Sobretudo como maneira de nos deixarmos convencer pelo mundo de que somos algo que não somos, pior, que nem sequer sabemos se somos ou não. É contra esta ignorância, muitas vezes temida e assim alimentada pelo próprio ser que me levanto.





Perguntas: "o que existe em nós depois de sermos" Que maravilha seria se alguma vez nos pudessemos perguntar isso mesmo, com o nosso ser perante nós! Seríamos deuses que vêem o mundo como algo Lá Fora. Como algo inconfundível com a sua própria essência.



Excluídos os extâses místicos não penso que o ser humano o consiga. Mas desejo que o busque. Pois se alguma vez conseguirmos ser, no sentido que lhe estás a dar, o de sermos totalmente o nosso mundo interior, sua concretização ou consciência apenas, nesse momento seríamos algo diverso. Algo que se confundiria com o mundo ou, pelo contrário, algo impossível sequer de tentar definir.



Estamos continuamente sendo. E não desejo que sejamos num sentido finalístico mas de percurso. O que quis sublinhar foi qual o sentido do percurso. E aí, claramente, advoguei um profundo conhecimento do nosso mundo interior. Um confronto com tudo o que é nosso. Uma tentativa que seja de percebermos o que nos distingue do mundo exterior, assim delimitando o nosso mundo interior. Só isso já promete descobertas incríveis.





Perguntas: "O que podemos ser para os outros tendo tido a liberdade de ser para nós mesmos?"



A minha resposta é: tudo.



A não ser que denote uma certa ideia de auto-satisfação, que não aceito, a resposta tem de ser evidente. Depois de termos tido a liberdade para sermos, no sentido que aqui venho assumindo, podemos ser para os outros tudo. A medida do conhecimento de nós mesmos, isto é, do nosso mundo interior e do mundo exterior só beneficia o contacto com os outros. Isso é já evidente no confronto entre visões próprias do mundo exterior. Basta pensarmos nos milhares de temas de discussão possíveis desde a política à religião passando por infindáveis temas sociais. Mas a partilha do mundo interior, eis o que tece a verdadeira proximidade entre os seres. Ora quanto mais conhecer o meu mundo interior mais estarei - supõe-se - apto a expressá-lo. E não me refiro necessariamente às palavras mas a qualquer forma de expressão. O silêncio incluído.



Apenas um pensamento egocêntrico (mas todavia possível) poderá concluir que depois de sermos, livres, nada mais poderemos ser para os outros. Como que cairíamos numa estado de autonomia global. Mas aí devo acrescentar, embora só por si seja um tema independente, que as pessoas se aproximam umas das outras, creio, não para se conhecerem melhor, mas para serem melhor. Embora isso, implique auto-conhecimento, claro. Mas mesmo na hipótese teórica de alguém se conhecer já totalmente sempre haveria que continuar a ser. E isso é melhor feito em partilha. Quer pela natureza partilhável do mundo exterior, quer - aqui mais dubitativamente - pela natureza optimizável do mundo interior, quando partilhado. Embora mais exigente, do ponto de vista dos critérios de acesso à partilha. Como as relações íntimas, que são baseadas em partilha do mundo íntimo, demonstram.



Figment, parece-me que extremaste a discussão. Não falo de uma morte social, pelo menos não é o que desejo como liberdade dos outros. A liberdade que desejo para ti é a liberdade de seres não apenas uma construção de um Eu, moldado pelo mundo exterior, mas também não implica cair no seu oposto, construir um Eu, autista - se é que tal é possível - explicado apenas pelo mundo interior. O meu desejo é o do sentido do percurso e parece-me que a liberdade mora aí. Parece-me que a liberdade é no sentido do interior que, então, nos devolverá ao exterior. Numa frase, quanto mais soubermos de nós mais saberemos do mundo.



Sartre disse o Inferno são os outros. Eu direi, os outros, que são o mundo, somos nós (talvez por isso não tenha muita paciência para Sartre...)



Não é à toa que Sócrates tomou como divisa filosófica a inscrição do Oráculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo.



Com isso o vetusto oráculo de Gaia não pretendia incutir um espírito individualista e egotista no povo grego mas antes demonstrar que todo o ser pleno só o é sabendo o que é. Confrontando-se consigo tanto quanto com o mundo. Pelo menos assim interpreto as palavras do Oráculo.





O tema do Fim, por fim.



"Ser livre é morrer" dizes. Não concordo. A liberdade é algo que se define como activo e dinâmico. A morte é sempre passiva. Além de excluir opções. Ora, toda a liberdade é uma opção. Diria que a liberdade é o contrário da morte. Nesse sentido a liberdade é vida.

Apenas aceitaria a liberdade como morte se se definisse a vida como ausência de dúvidas e opções. De busca. Mas não posso estar mais longe dessa visão da existência humana. Sou livre quando submeto o mundo exterior ao meu mundo sem, no entanto, o excluir. Tenho de criar o meu próprio espaço-tempo. A liberdade que te desejo é essa capacidade. De olhares para dentro de ti, de buscares dentro ti a forma de regressares ao mundo. É uma perdição que se torne redenção.



Mas concordo que a liberdade pode ser um fim. Embora a veja como meio, como caminho, é num certo sentido um fim. A liberdade levada aos seus limites totais, ou seja, a viagem em nós pode tornar-se um fim em si mesmo. E aí damo-nos aos outros apenas se estes conseguirem fazer a viagem connosco. Nesse sentido aqui disse uma vez que para alguém estar comigo (entenda-se este estar num sentido de comunhão completa) teria de ter fé. Pois o que é preciso ter senão crença quando mergulhamos em nós ou no outro?



Onde de todo não posso estar mais afastado de ti, Figment é quanto a afirmares que "quem está de fora apenas pode escolher o fora, e isso é o fim...". Pelo contrário, diria que é o princípio. Se estás de fora, tens duas opções. Tentar entrar ou não. Podes resignar-te desde logo e, claro, nada mais conhecerás que o que está de fora. A visão da outra pessoa ao mundo exterior. O que ela mostra e o que ela vê. Mas nada mais.



Mas podemos tentar chegar ao Dentro, por oposto a esse Fora de que falas. É um esforço dividido. Por um lado o esforço do próprio através da liberdade de que escrevi. A liberdade para ser e assim vir ao mundo. E não vir ao mundo para ser - se. Por outro, um esforço nosso, que queremos essa pessoa, e logo o seu mundo, de aí entrarmos, de acreditarmos, pois a razão nega desde logo que o possamos conseguir, de acreditarmos, dizia, que podemos ir ao mundo interior do outro.



Diria, aliás, que o auto-conhecimento, a exploração do mundo interior tem como principal virtude permitir-nos aceitar melhor o outro que nos tenta. Que nos tenta alcançar. Quanto menos nos conhecermos, menos conheceremos os outros. Menos aceitaremos os outros, como Mundo que são.

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