domingo, 21 de dezembro de 2003

Do medo e suas ramificações



O medo é um tema que me fascina. Talvez mesmo um dos mais paradoxais temas sobre que costumo reflectir.



De entre os vários medos possíveis, variados quanto ao critério utilizado, interessa-me hoje pensar sobre um especial. O medo de que gostem de nós pelas razões erradas. Razões essas, seria desnecessário dizê-lo, que são íntimas e identitárias. Isto é, as razões erradas são-no em em relação à auto-imagem de cada um.



Consideremos isto. O ser humano, teme em geral, ser amado pelas razões pelas quais seria óbvio ser amado.



Admito, estou a pensar em mim e a tentar induzir uma tese. Mas, sejam indulgentes, talvez o caminho valha a pena.



Serei honesto e escreverei na primeira pessoa. Generalizarei quando pensar ser possível.



No meu caso temo que gostem de mim pelas razões em que exterior e objectivamente sou bom e logo atraente. A ligação entre o bom e o atraente é clássica e impossível de traçar, mas conheceu adeptos tão esclarecidos como Platão e Aristóteles, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Santo Anselmo, Kant ou Deleuze. É, pois, compreensível que as pessoas se aproximem de mim, e umas das outras, por aquilo em que sou bom. Claro, a qualificação é o problema. É que aquilo que é objectivamente bom é o que na verdade é socialmente valorado por uma maioria o que nada tem que ver com o critério totalmente subjectivo do gosto ou do amor que o sujeito deseja para si.



Pelo contrário. Desejo que gostem em mim daquilo que penso serem os meus aspectos medianos ou mesmo negativos. Querem que tratem aquilo em que me valorizo como eu próprio trato: com desdém, como adquirido. O que desejo é que gostem de mim pelo inexplicável, pela simples presença.



Pense-se no caso da modelo que tem trauma de não ser intelectual e que abomina que se interessem por ela por ser bonita. Não é evidente que tal acontecerá? Mas não é também compreensível que ela não valore isso como positivo? Parece-me que sim.



O exemplo inverso também é possível. O esterótipo da pessoa arrumada, atinada, culta que deseja ser amada pela sua loucura, pela sua capacidade de transgredir as regras. Será só e apenas uma vontade de ter aquilo que não se tem?



Independentemente da verificação mais ou menos frequente destes exemplos, importa-me esta repetição de vontades.

Em mim ela é muito claro. Tenho pânico de que as pessoas se aproximem de mim por razões que, vistas bem as coisas, são perfeitamente previsíveis e compreensíveis. Talvez por isso me amedrontem tanto.



Acho que o que é bom e/ou atraente não deve ser motivador de gosto ou amor. Pois assim se objectiva e explica algo que não deve, para mim, ser objectivado e explicado. Admiração, por certo. Atracção mesma, desde que entendida, como um fenómeno meramente físico e não agregador ou provocador de emoções continuadas e profundas.



Claro que há um poderoso contra-argumento. Mas não será compreensível que se ame em alguém o que ela tem de melhor? O que é bom. Claro. Mas a minha preocupação é a aferição desse bom. Se houver uma discrepância entre aquilo que a pessoa que me ama ama em mim e aquilo pelo qual pretendo ser amado os resultados podem ser catastróficos.



Pense-se no seguinte exemplo. Imagine-se um advogado de sucesso, medianamente bonito, com dinheiro. Que gostem dele pelo sucesso profissional, pela beleza ou pela riqueza, com maior ou menor grau de aceitação, posso até admitir que é compreensível. Mas parece-me igualmente compreensível que o próprio não queira ser amado por isso. E excluo aqui complexos de culpa quanto ao seu sucesso e dinheiro. Admitamos que se trata de um sucesso e riqueza merecidos. No entanto o próprio não lhes dá valor. E, no entanto, é amado por isso. Um dilema. E compreende-se a pessoa que por essas razões ama - a admiração profissional é, aliás, umas das maiores razões de atracção. Mas compreende-se igualmente a pessoa que deseja ser amada por... um je ne sai quoi. É isto que, no fundo, aqui estou a advogar.



O meu medo é de ser amado por razões que eu próprio despreze mas que, no fundo, compreendo que sejam factores de atracção, paixão e mesmo enamoramento. O meu desejo é que o gosto e o amor sejam inexplicáveis. E, como tal, o meu medo deixe de ter sentido pois deixo de poder controlar ou verificar as razões pelas quais sou amado. Elas seriam insondáveis. Eis o paradoxo, de que já aqui uma vez falei, para mim o amor mais seguro, mais criativo e mais forte é aquele que não se explica. E que, no meu caso, não me amedronta.



Assusta-me pensar que as pessoas que me procuram ou que gostam de mim, sabem explicar porquê. Por mais estranho que isto possa parecer considero normal que o ser humano deseje ser amado pela sua humanidade. Ora a humanidade é inexplicável.



Pelo menos até ao momento...

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