quinta-feira, 4 de dezembro de 2003

"...ninguém anda a ler para ter a verdade, mas para a poder reconhecer quando ela aparece nossa frente. Ou pelo menos, para poder prevenir-se da mentira. O medo é o melhor amigo do Homem, e eu, [...], duvido de mim própria o tempo todo. És um mentiroso, provavelmente. Ou não."



H.M.



Lendo a Verdade, a Mentira e o Medo



Não sei porque leio. Quando ponderei esta pergunta já lia há muito tempo e não me pareceu que saber a origem dessa acto-prazer-compulsão pudesse ter em mim qualquer efeito. Além de uma genérica sensação de conforto pela descoberta de mais um pedaço de mim. Encaro-me a mim próprio como um enigma, um segredo...diria que...



"Our cause is a secret within a secret, a secret that only another secret can explain; it is a secret about a secret that is veiled by a secret."



Ja'far as-Sadiq, sixth Imam, cit. Umberto Eco, Foucault's Pendulum



Assim me considero. E assim gostaria de pensar toda a existência humana. Em vez do vazio existencialista um enigma. Um enigma por revelar, um enigma a revelar. Não quero assim destruir teorias filosóficas. Nada me surpreenderia se ao cabo do desvendar do enigma descobríssemos o vazio. É o percurso até ele que me interessa.



Ou seja, não leio para descobrir a verdade. Leio para me descobrir, para me revelar, para desvendar. Se com isso se chegar à verdade, melhor. Pois dela não tenho qualquer ideia.



Poderia dizer que a verdade é a morte. O cristianismo não me deixaria mal. Jesus, a Verdade, morreu por nós. A verdade morreu, pois, por nós.



Sabemos, no entanto, que a Verdade não morreu. Antes ascendeu aos céus. A verdade é, pois, uma morte que se perpetua em divindade até ao Juízo Final. Momento em que a Verdade regressaria ao nosso meio.



"Aquele que é testemunha de todas estas coisas diz "Sim! vou chegar muito em breve!" Assim seja! Vem, Senhor Jesus!"



Apocalipse 22, 20



Estaríamos, por isso, desde a morte de Jesus, sem a Verdade entre nós? Com uma Verdade adiada, hipostasiada, mimetizada? Longínqua. Até ao Reencontro Final.



Fica por resolver a questão fundamental. O que é Jesus? É amor. O que é o Amor? É a verdade. There we go again... Não me parece ser este o caminho. Ou dito de outro modo. Este é, também, um caminho. Mas não nos apresenta a chegada. E essa mesma dúvida podemos encontrar em outras religiões. Tarefa metódica que deixarei para outros dias, dedicados às matérias religiosas.



A verdade não há-de ser, totalmente, a morte. Podê-lo-á ser, em parte, mas devemos render-nos a evidências de que enquanto estamos vivos a verdade há-de ser algo diverso da morte sob pena de cairmos num niilismo fatal, que nos definiria a vida como a descoberta da verdade pela morte. Pobre vida seria. Embora já alguns o tenham ensejado.



A verdade, assim desconhecida, pode bem por isso ser esse secreto enigma que nunca atingiremos, que antes nos impele. Idealmente. Neste percurso a virtude desta verdade inalcançável poderá ser o de nos precaver da mentira. Do preconceito.



"To dare to allow for all [the] different viewpoints, including the encompassing scientific one, [is] a greater achievement than to pursue the discovery of one exclusive Truth. The new challenge [is] to understand that the truth [...] is multiple and varied and yet also one. But this [is] something that [...] people [find] hard to do. It [is] easier to stick to an opinion.

[The] challenge [is] not so much to establish the Truth of the stone, but to learn to live with the mysteries of its many shades of light"




Emmy van Deurzen , Paradox and Passion in Psychotherapy



Neste sentido podemos dizer que mais do que a busca da verdade importa a busca da mentira, ao modo de Bachelard.



É evidente que esta posição nos cria medo. A normal insegurança daqueles que se movem em terrenos sempre mudando. Mas isso não nos deve demover. Ou, melhor dizendo, não me demove. Nesse sentido, a cada momento sou um um mentiroso medroso em busca da verdade. Minto pois cada momento que passa nego uma verdade assumindo outra. Afinal, uma e a mesma. Medroso pois a inconstância e a insatisfação interior instam-me a duvidar. Tenho medo de ainda não ser aquela a Verdade, mas apenas mais uma verdade. E prossigo.



Parece-me que prosseguirei sempre. Mas se algum dia me encontrar com uma verdade que me pareça a Verdade, que amanse o meu medo e me impeça de mentir, serei o primeiro a sentar-me à sua sombra. Tentarei aproveitar os seus frutos.

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