quinta-feira, 4 de dezembro de 2003

"...na minha opinião, Nietzsche tinha dito uma coisa da qual tu te esqueceste, ao citá-lo: a síntese dele é que cada homem é um valor - ou seja, se para ele os valores não existem e se a moral é uma espécie de negação da vida, o que ele de facto quer dizer é que a tradicional forma platónica de projectar valores n existe, porque os traduz (os trai), sempre que é utilizada. Não existe a folha. Nenhuma folha é igual à outra. Ninguém é normal, porque todos somos normais. Daí que os valores são os próprios homens. Cada homem é um novo valor. Às vezes há pessoas tão porreiras que uma pessoa tende a transformá-las em conceitos abstractos (a abstractizá-las? diz-se assim?) (Eu tinha explicado isto muito melhor n[ão] sei bem aonde). Se Sócrates morre para dar o exemplo de que aceita sobretudo a lei, e se Jesus faz a mesma coisa, já vês porque é que Nietzsche tripa com eles e é anti-eles. (atenção: É muito fácil que esta teoria seja traduzida para maus fins, e foi o que aconteceu, com a trip do super-homem ariano, mas pronto, ok, isso tu sabes, e não interessa agora para o paleio - actualmente ando interessada nos judeus, em Levinas e Derridas para equilibrar ou assim, se queres saber.)"



H. M.





Para além de Nietzsche



O Nietzsche que referi interessa-me pela forma como mata Deus unicamente para afirmar que a existência humana é algo de profundamente dilacerante e angustiante na sua solidão, post deum mortem. Repare-se: interessa-me a primeira parte e não esta última, com que, aliás, não concordo. Aliás, nem o próprio Nietzsche. A razão pela qual enlouqueceu prende-se com a sua incapacidade de viver com o entusiasmo do paradoxo. Entusiasmo significa estar preenchido de deus. Ele mata deus unicamente para ressuscitar dois: Diónisos e Apolo. O primeiro o deus do paradoxo, o segundo o deus da linearidade. Com esta contradição, que ele próprio revela e assume, nunca se conseguiu muito bem entender



"Ich bin dein Labyrinth... [...] Ich bin deine Wahrheit..."



Nietzsche, Os Ditirambos de Diónisos



Cada homem é, pois, um novo homem. Sempre devendo superar-se no meio do seu próprio cepticismo e da sua própria subjectividade. O super-homem é afinal o novo deus, enquanto deus se mantém o mesmo, um preenchimento do interior, uma alma, que Nietzsche começa por negar para depois encontrar em si mesmo. Enlouqueceu. No encontro da verdade, pois o que é a loucura senão a verdade incomunicável encontrada. Uma maldição de Cassandra: saberás mas não te acreditarão.



"Continuamos sem saber de onde provém o impulso para a verdade; porque até agora apenas ouvimos falar da obrigação que a sociedade impõe para existir: ser verdadeiro, isto é, utilizar as metáforas usuais, portanto, expresso de uma maneira moral, da obrigação de mentir segundo uma convenção estabelecida, de mentir de um modo gregário, num estilo vinculativo para todos"



Nietzsche, Acerca da Verdade e da Mentira



Ora, onde discordamos que a mentira tenha de seguir uma convenção estabelecida. Ou seja, que a verdade seja só uma e redunde numa só mentira. Uma mentira social. A mentira, pelo contrário é algo de pulverizado, que nega a difusa verdade. E Nietzsche bem o sabia...



"eu sou o que é constrangido a superar-se a si mesmo até ao infinito [...] Porque será mister que eu seja luta, e devir e finalidade, e contradição?Ai! aquele que adivinha a minha vontade adivinha quão tortuosos são os caminhos que precisa seguir"



Nietzsche, Assim falava Zaratustra



Eis onde o filósofo louco demonstra que a contradição valorativa é afinal a assunção do binómio eterno mentira-verdade. Para ele a verdade é o devir em algo para além do previsível. Matam-se os valores, mata-se o homem. Surge o super-homem coroado de eterno-retorno.



O que importa tudo isto? Muito pouco, quase nada.



De Nietzsche pretendo reter a afirmação de um devir refundido, roubado a Heraclito, antes de todos. E, sobretudo a ideia de uma existência paradoxal mas não por isso vazia, pois continuamente alimentada. Eis onde me aproximo dele tão-só para me afastar do seu abraço niilista. É que o nada não chama. Não acredito na voragem vazia. Toda a voragem vertiginosa que clama há-de conter algo dentro de si. Penso que isto mesmo Nietzsche percebeu. Mas já não nos deu conta. O seu próprio deus, que tão mal compreendeu, levou-o.



O mais interessante é que nem Sócrates nem Jesus se matam para assumir a lei e o filósofo bem poderia ter alcançado um pouco mais de luz se o houvesse compreendido. Pela morte, Sócrates e Jesus, colocam-se acima e além da lei. O primeiro porque a supera moralmente. O segundo porque a supera espiritualmente. Ambos dão a outra face. O que nunca é aceitar mas antes a suprema transgressão.



Não se tivessem sacrificado Sócrates e Jesus por nós e não teríamos civilização europeia. Nem César, nem Deus. As suas mortes, triunfantes, apaixonadas, imortalizaram-nos. Tivessem vivido e hoje não estaríamos aqui. Não com esta matriz civilizacional.



...de Derrida não falarei agora. Integra-se na rubrica dos Autores que leio apenas para poder dizer mal. Um dia neste blog.





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