quinta-feira, 4 de dezembro de 2003

"...isso levar-me-ia a tentar descodificar o inconsciente colectivo actual (a tentar fazer uma espécie de upgrade da cena) e é provável que entretanto marasse de vez dos cornos. Poderia fazê-lo, mas ou isso ou a carta de condução. Ou continuo enfeitiçada pela linguagem ou ando com a minha vida para a frente. E para que haveria eu de escrever na blogosfera, caro leitor ideal ausente????!!!!"



H. M.





O leitor ideal ausente ou Lector in Fabula



"Avant d'expliquer aux autres mon livre j'attends que d'autres me l'expliquent. Vouloir l'expliquer d'abord c'est en restreinde aussitôt le sens; car se nous savons ce que nous vouloins dire, nous ne savons pas si nous ne disions que cela - On dit toujours plus que CELA. - Et ce qui surtout m'y interesse, c'est ce que j'y ai mis sans le savoir, - cette part d'inconscient, que je voudrais appeler la part de Dieu. - Un livre est toujours une collaboration, et tant plus le livre vaut-il, que plus la part du scribe y est petite, que plus l'accueil de Dieu sera grand. - Attendons de partout la révélation des choses; du public, la révélation de nos oeuvres."



André Gide, Paludes



Comecei a escrever, como todos os que começam a escrever, exceptuados aqueles espontâneos escritores, cujo chamado das palavras não vem das palavras, mas de uma incógnita voz que lhes ensina as letras e o modo, porque havia começado a ler.



O que se lê à boca do deslumbramento de poder ler, de saber ler, é o momento decisivo de um percurso. Não é irreversível mas é incontornável. Eu li os clássicos, estrangeiros e portugueses. Um dia vos falarei dos clássicos. Dos meus clássicos. E li Umberto Eco. Eco semiólogo. E li Italino Calvino. Calvino filósofo.



Vou levar-vos comigo ao contrário. Deixem-me contar-vos o fim desta história. Ela acaba onde se percebe por que o escritor destas linhas escreve para alguém que não existe. Alguém, como um amante ideal, que se sabe não existir mas cuja ilusão é doce. E basta. Mais. Motiva. Este escritor, que evidentemente se vê a si mesmo de fora para dentro, ideal, escreve para um leitor ideal. Os mais dados a reduções simplistas dirão: escreve para si mesmo. O escritor ideal escreve para alguém que o compreende como todo o ser humano gostaria de ser compreendido. Totalmente. Mais. Para além da totalidade, como um mistério inefável. O leitor ideal compreende melhor a existência do escritor do que ele mesmo. Eis a destruição de todo o existencialismo: não mais o escritor é um invólucro do nada, ele é a fonte de onde brota a matéria-prima do leitor ideal. Este leitor, leitor demiurgo, é ele mesmo a razão de ser, profunda razão de ser, do escritor ideal. Só a sua intervenção o completa, só ela lhe dá significado. Identidade. O escritor ideal é criado pelo leitor ideal.



"O leitor modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor empírico é você, eu, quem quer que seja, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de muitas maneiras e não há uma lei que lhes diga como devem ler, porque frequentemente usam o texto como um contentor para as suas próprias paixões, que podem surgir do exterior do texto, ou que este pode casualmente despertar."



Umberto Eco, Seis Passeios pelos Bosques da Ficção



Ora, por paradoxal que possa parecer, eu, embora escreva secretamente para o meu leitor modelo, encarnando, por elementos várias, o autor modelo, pretendo, furiosamente, que seja o leitor empírico a tomar conta do meu texto. Quero que ele "avance no bosque narrativo como se fosse o seu jardim privado". Mais. Que nem pense sequer em fazer outra coisa. Que desde o início apenas veja o seu jardim. Tudo lhe pareça desde logo familiar. E que isto assim aconteça com todos os leitores. Quero que se esqueçam de mim.



Ou seja, o meu leitor modelo está oculto nas entrelinhas, é um meu prazer secreto, para quem escrevo meta-narrativas, com deliciosos pormenores que só ele perceberá e que constroem a nossa cumplicidade. Trata-se de um leitor ideal ausente. Um leitor ideal que conversa comigo nas entrelinhas. Com quem discuto de modo aceso, enquanto o texto, em todo o seu esplendor, é tomado pelo leitor empírico. E me abandona.



Mas há mais.



"Há duas maneiras de percorrer um texto narrativo. Este dirige-se, acima de tudo, a um leitor modelo do primeiro nível, que quer saber (e com razão) como acaba a história (se Achab conseguirá apanhar a baleia, ou se Leopold Bloom encontrará Stephen Dedalus, depois de se ter cruzado casualmente com ele várias vezes no dia 16 de Junho de 1904). Mas todo o texto se dirige também a um leitor modelo do segundo nível, que se interroga sobre que espécie de leitor a história gostaria que ele se tornasse, e deseja descobrir como procede o autor modelo que o vai guiando. Para se saber como acaba a historia, normalmente basta lê-la uma vez. Mas para se identificar o autor modelo, é preciso ler o texto muitas vezes, e certas histórias têm de ser lidas sem fim. Só quando os leitores empíricos descobrirem o autor modelo e tiverem compreendido (ou tão-só começado a compreender) o que ele queria deles, é que se tornarão leitores modelo de pleno direito."



Umberto Eco, Seis Passeios nos Bosques da Ficção



Pois bem. Na poesia desejo que nunca o leitor empírico se torne leitor modelo. Para mim não há sequer possibilidade de tal acontecer. O leitor modelo é aí um ideal, total. E o escritor poeta mesmo que enderece a sua poesia a alguém ou um fim está destinado pela polissemia rítmica e semântica a ser apropriado por cada leitor. Mesmo que este tente tornar-se leitor modelo nunca o conseguirá. Ou consegui-lo-á apenas formalmente, pois poderá seguir a estrutura do poeta mas não o sentido do poeta. Pelo menos não do meu poeta ideal. É que o sentido da poesia, como acreditavam os antigos gregos, é divino. Estaria aqui com Gide ao dizer que mesmo que convoque a colaboração do leitor sempre ele chegará, ou deverá chegar, a um sentimento diverso daquele que pretendi celebrar. Os sentimentos semelhantes são ainda e sempre separados por um abismo. O abismo da irredutibilidade humana. Diria mesmo, sobretudo, aqueles que mais se parecem assemelhar.



Não assim na prosa. Quanto mais estruturada e complexa. Aí escrevo para uma miríade, impossível e indesejável de determinar, de leitores empíricos. Como os desejo! Que tomem a obra e criem confusão. Se recriem nela e nela se discutam. E me deixem na intimidade profunda que pretendo construir com o meu leitor ideal. Aquele que apanha as subtis referências culturais, os truques linguísticos, as arquitecturas ocultas da narrativa.



Calvino parece não concordar comigo



"Estou convencido de que escrever prosa não deverá ser diferente de escrever poesia; em ambos os casos se trata da procura de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável"



Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio



Mas de aparência se trata pois Calvino debruça-se sobre a motivação do escritor, não sobre as possibilidades ou faculdades do leitor. Ora é aí que devemos encontrar a destrinça que faço entre prosa e poesia. A poesia mais facilmente se deixa levar pelo leitor empírico. Mais facilmente, acrescento eu, desejo que se deixe levar pelo leitor empírico. A poesia assemelha-se-me a algo que só se completa quando o leitor lhe atribui o seu próprio significado. Deveria ser cada leitor a assinar um livro de poesia. O poeta é uma mera voz perpassante.



"A regra fundamental para abordar uma obra de ficção é o leitor aceitar tacitamente um pacto ficcional, a que Coleridge chamava "suspensão da incredulidade". O leitor tem de saber que o que é narrado é uma história imaginária, sem que por isso pense que o autor está a dizer mentiras"



Umberto Eco, Seis Passeios nos Bosques da Ficção



Ora, na poesia de que aqui escrevo, a "suspension in disbelief" é impossível pois o leitor por mais que se queira tornar modelo de um modelo do autor é dilacerado, arrebatado, vivificado por algo muito dificilmente sujeito a incredulidade: os sentimentos. Haverá algo mais difícil do que suspender a incredulidade dos sentimentos? Ou se sente ou não se sente. Mas a sentir-se, sente-se sempre em si. Eu sinto-me.



Podemos tentar suspender a nossa incredulidade apenas suavemente. Acreditamos que aqueles são os sentimentos do autor e seguimo-lo. Mas os sentimentos são algo de irracional pelo que dificilmente sentimos em conjugação com o autor. Antes nos apropriamos do seu sentimento e o preenchemos de nós.



Não assim com a prosa. Essa permite-nos a porta de um mundo, a sua travessia, a entrada em novas Físicas, novos Princípios. Mesmo que depois, mais tarde, se nos depare o sentimento, já o conseguimos endereçar às personagens. Ora o eu poético, sou sempre eu leitor. Leitor empírico portanto.



Escrevo não tanto sobre uma diferença, abrupta entre poesia e prosa mas entre um espírito poético e um espírito prosador. Sendo que estes tanto podem perpassar o que convencionamos chamar poesia, como o que convencionamos chamar prosa.



Assim, o leitor ideal continua ausente.



Na poesia só o poderia admitir se acreditasse num Outro Eu. Corpóreo, existente, pulsante.



Na prosa ele existe também e deve existir. Mas prefiro oferecer a obra para o leitor policial empírico, que deseja saber whodunnit, e resguardar um espaço oculto para o Ele. Essa figura entre a minha imaginação e a possibilidade real



E isto porque...



"...oxalá fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada de um eu individual, não só para entrar noutros eus semelhantes ao nosso, mas também para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na Primavera e a árvore no Outono, a pedra, o cimento, o plástico..."



Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio



Eis onde me encontrei com Calvino, em deslumbre.



Ambos sonhamos estar para lá do eu. Que pouco sei o que é.

Deixar o texto ser vagamente nosso e profundamente dos leitores tangentes.

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